Ao Manuel Lapa Quem te pintou triste e secreto, Ó Cristo de olhar vendado, Ó Cristo misterioso, abandonado no Museu das Janelas Verdes, quem te pintou saudoso, talvez do céu, talvez do homem, talvez da criação antes da prova, quem te pintou assim, sereno e encoberto, imagem nova que um povo a ti votado um dia descobriu? Ninguém conhece o mestre que te viu enigmático, silencioso, um Deus, dir-se-ia, envergonhado, mais que humilhado, vexado porque a palavra se cumpriu, porque na hora precisa os seus irmãos eleitos o julgaram, o feriram, o mataram e porque ao longo deste tempo interminável, após a crucifixão, após a ressurreição o julgamento prossegue, a tortura, o crime, a traição, o deicídio constantemente perpetrado ao sabor da existência quotidiana. Ninguém conhece o pintor, o iniciado, o sabedor do mistério que é o longo movimento necessário do nosso universo imaginário, onde tudo é signo e símbolo, onde o olhar de Jesus, encoberto, ensina a suprema perfeição de um Deus capaz de amar e de chorar, de um Deus assassinado capaz de ressurgir e de voltar sem parábolas, sem cifras, sem véus na plenitude da final revelação. Ah, não, bizantinos sonhadores, não, estetas da Itália, da França, mestres da Flandria, da fria Inglaterra, da férrea Germânia, não pintores da Espanha, vossa não podia ser a exacta imagem que um português criou e jaz sepulta no Museu das janelas Verdes, em Lisboa! De Ti, sábio Jesus, promotor do movimento necessário, homem secreto do futuro cumprido, de Ti fizeram um diáfano celeste de ouro ornado e neste mundo perdido, um reflexo do maravilhoso céu sonhado, entre nós caído para que misticamente o contemplássemos... De Ti fizeram um Orfeu ou um Apolo, querendo idealizar-te à helénica medida, a finita estrutura do sedutor, estético humanismo... De Ti fizeram um racional justiceiro, um implacável profeta, um missionário da lei divina, um Rei, um General, um Papa, de Ti fizeram ainda um comerciante de almas demasiado carnal, demasiado terreno em cenas burguesas, em habituais paisagens holandesas, De Ti fizeram um transcendente imperador que pela vontade e pela inteligência os homens foi capaz, de dominar... De Ti fizeram um humano angustiado, primeiro Actor do teatro do mundo, aflito protagonista de tragédia... Mas Tu não choras, ó Cristo, pelo Teu padecimento, não sais fora de ti em esgares de sofrimento, não és o magro asceta castelhano, o torturado místico envolto em sombras, o cadaveroso deformado! Sofres, sereno, sofres, saudoso, sofres, sábio e santo mas não por Ti, se sofres é por nós, sempre e hoje, nós no longo, interminável tempo, nós em guerras, em doenças, em horrores, nós, infiéis de geração em geração, nós perdidos, nós esquecidos, nós, livres, libertos, todavia, senhores da invocação, da decisão, senhores da graça luminosa ou do erro gasto e repetido. Sofres secreto e o Teu olhar de fogo ficará oculto até que à pureza humana o possas desvelar. Este é o povo das grandes, longas quedas e também das grandes, fundas intuições, este é o povo que em Cristo vê o Messias revelado e também o Messias encoberto de porvir, este é o povo que ama o Deus menino porque até na maturidade do Cristo renascido descobre a virtualidade infinita, irrevelada, o imenso ser, para lá de toda a imagem, o Espírito sem limites que a infância anuncia e que jamais, num conceito, num olhar, jamais numa verdade humana se detém. Ó Cristo de olhar vendado, ó Cristo misterioso, abandonado no Museu das Janelas Verdes, ó Cristo encoberto e final, vem, traz até nós o que ainda não somos, ensina-nos a sermos o para que nos criastes, em nome do nosso apelo, em nome do nosso sonho, em nome do nosso almejar-te e conceber-te Tu e Outro, patente e todavia encoberto Como no Ecce Homo das Janelas Verdes, em nome do desejo de total superação que subsiste no coração de todos os humanos, de todos sem exceção, vem e consagra a matéria deste mundo, o que em nós pesa e obsta à luz imensa do Teu Espírito, que todos pressentimos, todos sem excepção, ainda quando três vezes Te negamos. Ó Cristo próximo e distante, ó Cristo saudoso, misterioso, vem... Conhecemos a dor, tarda-nos o amor, vem connosco no termos merecido o império de paz que no mundo cindido entre gente próxima edificamos, vem connosco no olharmos ao espelho dos teus olhos desvelados. a nossa clara imagem descoberta, vem connosco, Irmão, na alegria de cantar aos quatro ventos, nos cinco continentes, nas terras e nos céus, Ecce Homo! Enfim, enfim, o Homem! António Quadros, em Imitação do Homem. Odes. Lisboa, Espiral, 1966.
|