Na hora matinal do ser, a face diurna no tempo da infância eu canto a alegria, eu canto a alegria. Alegria de estar vivo e ser a seiva a brotar e ser a vida a brotar e ser o impulso viril que abre os caminhos, que sobe as montanhas, que descobre outra vez o que já fora esquecido que refresca, que renova, que retoma e dá o passo que ainda não fora dado. Na hora matinal do ser, no riso da criança, no sorriso do velho, o mundo nasce outra vez, o homem separa-se da argila, regenera-se o ímpeto criador e a alma humana, genesíaca, levanta ao alto o universo. Na hora matinal do ser, na gargalhada do jovem, no canto da mãe, desvela-se, da terra, o enigma, revela-se, da água, o segredo, mostra-se, do ar, o sentido e descobre-se, do fogo, o mistério, não decerto por razões e por conceitos, mas sim por dizer sim, Senhor, sim, sim na confiança, na euforia, na esperança e na alegria que brota, espontânea, do diálogo franco, dos olhos nos olhos, das mãos estendidas, das vozes sinceras, a infância revivida na idade transcendida. Na hora matinal do ser, na face diurna, inesperada e fugaz surge a alegria, fugaz e breve, rápida como um clarão, aleatória, surpreendente, ela chega não sei de que esferas longínquas, atravessando não sei que paragens sombrias… No seio da viscosa indiferença, no ritmo mecânico da árida utilidade, na perversão do vício ou no sacrifício sem grandeza, na própria câmara asfixiante do sofrimento, para além das mil máscaras da dor, nos olhos febris do doente, nos olhos ardentes do revoltado, nos olhos cansados do vencido, nos olhos fugidios do humilhado, nos olhos desesperados do escravo, nos olhos vazios do miserável, ela nasce, espontânea e fugaz, flor da rocha, flor da lama, flor absurda em terra absurda, e desabrochando, radiante, ainda que só por um instante, vem trazer à corrupção o protesto da vida, a afirmação do ser, o sinal da perene mocidade do mundo, o signo da renovação o signo da ressurreição. Na hora matinal do ser - a manhã renasce em todos os momentos - , na face diurna - depois da noite, sempre o dia chega -, no tempo da infância - a infância é eterna -, Perdoai-me, Senhor, eu canto a alegria, eu canto a alegria, eu canto a alegria… António Quadros, em Imitação do Homem. Odes, Lisboa, Espiral, 1966, pp. 61-63.
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