Não, não há poesia em si, Senhor José. Porquê, Poesia? Poesia na sua cara enrugada e no seu sorriso sempre igual? Poesia no seu casaco passajado ou no seu colete de lã velhinho? Poesia nos seus sapatos disformes, No seu chapéu de que já ninguém faz troça, No seu olhar que já nem é cansado, No passo vagaroso com que anda na rua, Na maneira habitual como faz o seu cigarro quotidiano? O senhor é apenas um vulgar empregado de escritório, Ora olhe para si: Lá vai o senhor como todos os dias, Devagar, as mãos nos bolsos, os olhos no chão, A pensar não sei em quê. A pensar, talvez, na sua mulher que já morreu, Não sei, Ou nos seus pais de quem já mal se lembra; A pensar, talvez, na pequena mesa cheia de papéis, Ou na cadeira em que se senta há quarenta e quatro anos, Ou talvez no trabalho que tem que acabar hoje sem falta; A pensar talvez que só faltam três dias. Só três dias, Para ser domingo, E para se ir sentar no jardim municipal A ouvir o concerto da Guarda Republicana. Não, não há poesia em si, senhor José… Posso apertar a sua mão? António Quadros, em Além da Noite, 1949.
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