A sete amigos Na hora cinzenta da descrença, no fundo da negação, no tempo hostil da desarmonia, eu canto a graça, Senhor, canto a graça invocada, canto a graça inesperada, canto a graça quotidiana e canto a graça invulgar que oferece à alma desgarrada um novo ar para respirar. Conheço bem a luta da existência, a feira das vaidades, a guerra dos poderes. Conheço a realidade hostil e desgastante dos corações humilhados a vingarem-se das ambições em liberdade a descerem sem cessar para o que julgam o mais nobre e o mais alto. Conheço o desprezo e o despeito, conheço da injustiça o travo e da escravidão o temor e o tremor. Conheço a doença e a morte, conheço a saudade e a angústia, conheço também a revolta que nos leva raivosamente pelas ruas, altas horas da noite planeando desforras. Sei o que é ver na beleza fealdade e troçar de valores e ideais. Sei olhar o bem vendo o mal, sei fugir, sei odiar, sei o que é viver em desacor ferido e ferino, turbilhão de sentimentos recalcados num universo hostil e perigoso. Mas nesta hora cinzenta, Senhor, na hora do mal, na hora da desarmonia, eu canto a graça, canto a graça invocada, canto a graça inesperada, canto a graça quotidiana e canto a graça invulgar que oferece à alma desgarrada um novo ar para respirar. Que volta de maravilha, quando a nossa alma, ferida, tudo aceita como prova, e se encontra por encanto numa realidade nova numa vida transcendida em que a história é providência, em que a memória é vivência de fantástica aventura, de ciladas, de embuscadas, de traições, de prisões, de um jogo prodigioso de exacto significado. Que volta de maravilha, quando a paisagem, radiosa, se colora, quando o sol brilha sobre as águas turvas, quando, solitários, alguém nos faz companhia e a nossa alma, confortada, enlevada, se dá toda aos homens e ao universo. Que volta de maravilha, Senhor, o beijo da amada, o despertar do filho, a árvore plantada e a obra por nossas mãos conseguida. O ritmo do ser faz-se nosso e o coração, batendo-nos no peito respira como Deus a criação. Que volta de maravilha, quando os fumos se dissipam, quando as dúvidas se desfazem, quando todos os elementos em conflito se integram no mesmo movimento e quando, atónitos, reconhecemos o fim e o princípio, a luz que separa as sombras, a razão universal e misteriosa de que todo o mundo, inteiro e vário, é indício, é cifra, é sinal que o mal não nos deixava ler. Protagonista encoberta, companheira generosa e disponível, invisível promessa que mil vezes nos estende a sua mão aberta a graça segue-nos sempre, atena, próxima, dentro e fora de nós, ao alcance da voz e do silêncio. Mas nós, desatentos, a esquecemos, e por isso, na hora cinzenta da descrença, no fundo da negação no tempo hostil da desarmonia, eu canto a tua graça, Senhor, eu canto a graça invocada, eu canto a graça inesperada, eu canto, eu canto a graça… António Quadros em Imitação do Homem. Odes, 1966
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