Desejo, Desejo de outrem que não eu. Caminho pela cidade nevoenta E tudo é um reflexo abominável de mim. Aquele homem apressado cruzando uma praça, aquele garoto chorando com a cara entre as mãos, aquele jovem gesticulando, veemente… Tudo é eu num espelho deformado, todo o universo é um sarcasmo, a chuva goteja trágicas gargalhadas, estou só, sou só, só dentro da imensa solidão, só, ilha sem mar, só, ilha sem continentes do outro lado do mar, só, ilha sem naus que não levariam a parte alguma, inútil, estéril, irreconhecível sem o espelho inconcebível de uns olhos, outros, apenas pressentidos. É preciso, é absolutamente necessário inventar uma presença, é preciso imitar, ó ardência, ó ímpeto, ó desejo, é preciso imitar Deus e criar ó desejo, outrem que não eu fora de mim, outro ser diferente atraente ardente que me faça quebrar o círculo fatal, que me fale com outro silêncio, que me conforte por ser apenas o sinal de que a palavra ilha é uma abstracção, outro ser que receba, ó desejo, a força e o frémito e a substância e a vida e o acto que há em mim e assim me cumpra enfim não Deus mas criador no êxtase pressentido do amor, no fruir conceber ser, na cisão legítima que te peço, ó desejo, ó verbo, na enigmática cisão, mãe da união de todo o morrer e renascer. António Quadros, em Imitação do Homem. Odes,
Lisboa, Espiral, 1966.
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