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Newsletter Nº 210 / 14 de Junho de 2024
Direcção Mafalda Ferro Edição Fundação António Quadros
ÍNDICE

 

01  Porquê?... Porque celebramos Camões 500 anos depois?, por Annabela Rita

02 — Camões, por António Quadros, em "Portugal, Razão e Mistério: A Trilogia", 2020.

03 — Exposição Universal da Matriz Portuguesa - Camões 500. Informação.

04 — A infância de Fernando Pessoa, por António Quadros.

05 — Reedição do romance "A Paixão de Fernando P.", de António Quadros. Divulgação.

06 — Entrevista a António Quadros (excerto), por Marques Gastão.

07 — «A Palavra», conto publicado em "Histórias do Tempo de Deus", de António Quadros.

08 — Livraria: Obra em promoção: "Portugal, Razão e Mistério: A Trilogia", 2020.


EDITORIAL, 
por Mafalda Ferro.

 


Na presente newsletter evocamos três grandes autores portugueses: Luís de Camões, Fernando Pessoa e António Quadros (já perto do final das comemorações do seu centenário). Lembramos, também, com grande honra, a grande artista Inês Guerreiro (Setúbal, 13 de Junho 1915 / Lisboa, 14 Julho de 1998).

 

ENCERRAMENTO DO CENTENÁRIO DE ANTÓNIO QUADROS

LocalFundação António Quadros, Rio Maior. Data13 de Julho de 2024.

Apoio: Câmara Municipal de Rio Maior

 


PROGRAMA (a partir das 15h)

 

Acolhimento: Mafalda Ferro | Leonor Fragoso, vereadora da cultura de Rio Maior;

 

Visita livre à exposição «António Quadros e a Revista Espiral, 60 anos depois da sua inauguração»;

 

Debate «Duas Revistas Culturais em diálogo, Espiral e Nova Águia»: António Braz Teixeira | Renato Epifânio;

 

Apresentação do romance "A Paixão de Fernando P.", 2.ª edição. de António Quadros. Coordenação e Introdução: Mafalda Ferro. Prefácio: José António Barreiros. Ensaios: Anabela Almeida, Fabrizio Boscaglia, Joaquim Domingues, José Carlos Seabra Pereira, Lourenço de Morais, Manuel Cândido Pimentel, Manuel Dugos Pimentel, Manuela Dâmaso, Paula Mendes Coelho, Paulo Samuel, Pedro Martins, Ricardo Belo de Morais, Risoleta Pinto Pedro. Lisboa: Fundação António Quadros Edições | JAB-Livros;

 

Apresentação das "Actas do Congresso «Nos 100 Anos de António Quadros»", coordenação de António Braz Teixeira e Renato Epifânio. Lisboa: Fundação Lusíada | MIL | DG Edições, 2024;

 

Apresentação da revista «Nova Águia», n.º 33, por Renato Epifânio.



 

LEITURAS NO «PROJECTO ANTÓNIO TELMO. VIDA E OBRA»:

 

O camonismo de Estado, por António Telmo

 

A Heresia Portuguesa – Da Inquisição à Revolução: O País Subterrâneo (excerto), por Pedro Martins

 



INÊS GUERREIRO


A pintura de Inês Guerreiro é clara e luminosa como a sua alma
,
Fernanda de Castro, 1953

 

Pertencente à segunda geração de artistas modernistas portugueses, única discípula de Sarah Affonso, Inês Guerreiro dedicou-se à ilustração, ao desenho e ao retrato a carvão. a óleo e aguarela. São de sua autoria retratos de vários membros da sua família e da de Fernanda de Castro e, também, de Maria Archer, Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, José Osório de Oliveira, Rui Barbosa, Sampaio Bruno, São Francisco, William Shakespeare entre muitos outros.

A artista foi também restauradora, designer de móveis e de joias, decoradora de interiores, cenógrafa e figurinista.

Viveu em Paris e em Portugal, trabalhou na Fundação Calouste Gulbenkian, participou durante três anos consecutivos (1944, 1945, 1946) nas exposições de Arte Moderna do SNI e terá iniciado, nessa mesma década, a amizade que, até ao fim da vida, a uniu a Fernanda de Castro e à sua família. A partir dessa época, assinou inúmeras capas e ilustrações para obras da amiga e foi na tipografia de seu pai «A. Cândido Guerreiro» que Fernanda de Castro imprimiu alguns dos seus livros em edição de autora.

Com grande pena nossa, não é possível, este mês, dar a conhecer toda a sua obra mas outros artigos sobre a autora podem ser consultados em anteriores newsletters da Fundação, publicadas no sítio da Fundação, sempre em Junho, em vários anos.

Resta-nos esperar, seria mais que justo..., que, um dia, um crítico, um estudioso ou uma instituição de Arte leia os pequenos subsídios que a Fundação tem vindo a publicar todos os anos e se interesse decidindo dar-lhe visibilidade, embora saibamos que é mais fácil divulgar artistas já conhecidos do que, partindo da estaca zero, tirar do anonimato quem não é muito lembrado.

 
01 — Porquê?... Porque celebramos Camões 500 anos depois?,
por Annabela Rita.

De Os Lusíadas se nos impôs partir para repensar a experiência histórica, a experiência mental, a experiência espiritual e cultural desta nação da finisterra ocidental europeia, porque Camões foi o primeiro que a assumiu e interpretou na sua globalidade, o primeiro que apontou o seu lugar inconfundível na relatividade dos povos europeus, ainda se optimizando (com fins prospectivos e operativos) as suas possibilidades, o primeiro, enfim, que reflectiu sobre a distância entre o real e o ideal, entre a conjuntura negativa e o arquétipo a atingir, num horizonte não apenas humano, mas teocosmológico.


António Quadros. Portugal, Razão e Mistério (2020)

 
Nesta obra de culto aqui epigraficamente convocada, António Quadros responde à questão em título.


Mas apetece-me começar esta resposta com a homenagem mais óbvia e impressiva que Cesário descreve, remetendo para ela o esclarecimento e arrastando-vos para a imagem do vate:

 

Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,

Um épico doutrora ascende, num pilar!

 (“O Sentimento dum Ocidental”, 1880)

 

No Largo Camões, em Lisboa, ergue-se o monumento ao poeta que lhe dá o nome: o vate em bronze de 4 metros coroado de louros e com uma capa pelas costas, a mão direita empunhando a espada caída e a esquerda agarrando a si Os Lusíadas. Em torno do pedestal de mármore branco de 7,5m de altura, 8 estátuas, de pedra de lioz, de 2,40m de altura, representam notáveis da cultura, das letras e da ciência dos sécs. XVI e XVII: os cronistas Fernão Lopes, Gomes Eanes de Azurara, João de Barros e Fernão Lopes de Castanheda, o cosmógrafo Pedro Nunes e os poetas Vasco Mouzinho de Quevedo, Jerónimo Corte-Real e Francisco de Sá de Meneses. O conjunto é da autoria do escultor Victor Bastos (1860, inaugurado em 1867, como a praça, e celebrado em 1880), foi pago por subscrição pública (foram trinta e oito contos), preparando as comemorações do terceiro centenário da morte de Camões (1880), promovidas por Teófilo Braga com o apoio de João de Deus, Antero de Quental, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão. [1] O programa escultórico esclarece a centralidade e a elevação do épico na nossa cultura representada por referências das Artes, das Letras e das Ciências.

 

Em Coimbra, os Estudantes da Universidade de Coimbra promoveram, em 8/Maio/1881, o monumento de homenagem homóloga da autoria de António Augusto Gonçalves: uma coluna encimada por uma coroa de louro em bronze sobre um pedestal e com uma estátua de leão em bronze com a cabeça levantada. Inaugurado em 8/Maio/1881, próximo da Porta Férrea, foi desmontado em 1948 e foi reerguido em 1983 na Rua do Arco da Traição, tendo sido novamente transferido para a Av. Sá da Bandeira (faixa central) em 2005.

 

Segundo o Visconde de Juromenha, o “Príncipe dos Poetas” teria falecido em 10 de Junho de 1580, de acordo com um documento sobre a concessão da pensão à Mãe pela sua morte. E essa será a data que fundirá definitivamente o destino do poeta e da pátria (derrotada em Alcácer Quibir, 1578), irmanados na tragédia e na inicial (Poeta, Portugal, Pátria) maiusculadas, na dramática representação garrettiana que epigrafa este texto e que informa A Morte de Camões (1824), de Domingos Sequeira, distinguida no Salon de Paris com a Medalha de Ouro. Uma dupla tragédia que Junqueiro envolve no sudário de A Pátria (1896), réquiem pel’“a ditosa pátria minha amada” que em crístico Doido se simboliza, esse “gigante”-Génio-“[outrora] Arcanjo refulgente” “[r]ôto, cadavérico, longa barba esquálida, olhos profundos de alucinado” (Guerra Junqueiro) emergindo em grito-choro “contra a [tempestuosa] noite do Destino” que reúne Junqueiro e Gomes Leal

Nessa data se sela, pois, a identificação simbólica entre o Poeta e Portugal enlaçados no Livro que os diz, como reconhece lapidarmente Eduardo Lourenço nas comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas (Leiria, 1980): “É inegável que a osmose e a identificação entre o Poeta e o Livro, entre o Livro e a consciência nacional é não só um facto, mas o facto capital da nossa Cultura.” [2]

 

Em 1879, Joaquim de Vasconcelos propôs a comemoração do Tricentenário da morte de Camões na Sociedade de Geografia de Lisboa, em Janeiro de 1880, Teófilo Braga colocou o tema na ordem do dia (com a série de textosO Centenário de Camões em 1880, no jornal Comércio de Portugal (8, 9 e 10/Jan./1880) e, em Abril, criou-se uma comissão para a organizar, com destaque para J. C. Rodrigues da CostaEduardo CoelhoSebastião de Magalhães LimaTeófilo BragaRamalho OrtigãoJaime Batalha ReisLuciano CordeiroRodrigo Afonso Pequito. [3]

 

Camões como símbolo da comunidade marcada pela oscilação entre luzes e sombras, épica e tragédia, e o dia 10 de Junho de 1880 como "o começo de uma era nova" da "democracia portuguesa" [4] … numa Europa de circunstâncias cada vez mais favoráveis à ocorrência do Ultimatum inglês (1890) e onde Portugal, do desalento d’”O Desterrado” (1972), de Soares dos Reis, parece agigantar-se, agonicamente, como “povo (de) suicida(s)” (Miguel de Unamuno, Manuel Laranjeira) pelo gesto de intelectuais marcantes (Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, Mouzinho de Albuquerque, Soares dos Reis, Júlio César Machado, Silva Porto, Manuel Laranjeira…).

 

No tricentenário [5], em 1880, foi apoteótica a trasladação dos restos mortais dos 2 heróis Luís de Camões e de Vasco da Gama através do Tejo, conduzindo a população aos Jerónimos, como reporta, dentre outras, a revista O Ocidente (N.º 60, de 15/Jun./1880). Dominava o sentimento de que a Europa está com olhos postos nessas festas.

 

As representações de Luís de Camões variam entre o grande Poeta, “o novo santo de Lisboa” (Ilustração Portuguesa, Lisboa, 2.ª série, vol XI, 1911, pp. 780-81), o Génio trágico d’A Fome de Camões (Lisboa, & Etc., 1979, p. XII), de Gomes Leal, o náufrago “salvando um livro a nado” (“O Sentimento dum Ocidental”, 1880), de Cesário Verde. Cruzam-se e convivem com a memória comunitária as diversas perspectivas da elite literária, por vezes, inspirada nas petrarquistas italianas (1874) e nas homenagens francesas aos “génios do século” (Voltaire, Rousseau, Diderot, d’Alembert, Condillac e Adam Smith).

 

E porquê este consenso em torno deste Poeta? E o consenso na homenagem a ele?

Poderia sintetizar com a razão do mistério e o mistério da razão da identificação entre Camões e Portugal que Garrett promove, Domingos Sequeira iconografa, Fernando Pessoa convoca, Eduardo Lourenço psicanalisa, António Quadros ensaia… afinal, convergindo na constatação de que “As nações são todas mistérios” (Fernando Pessoa). Mas, nesse plural, Portugal distingue-se de um modo que António Quadros equaciona sibilinamente: “o mistério, de ordem numinosa e divina, prevalece sobre o segredo (cósmico) e o enigma (humano) de Portugal” [6].

Deixando esse mistério para outra ocasião, percorramos alguns argumentos para além do da identificação Poeta-Livro-Portugal (ou que nele convergem).

 

PRIMEIRO. Porque é um autor maior do nosso Cânone literário. Um Clássico no duplo sentido da palavra e tal como Italo Calvino, Harold Bloom, George Steiner e outros o afirmaram: dos que relemos, referimos e consagramos nos nossos programas académicos, mas, também, exponente destacado da nossa Renascença.

 

SEGUNDO. Porque nele convergem o singular e o plural, a figura e a paisagem: consubstancia e simboliza o país entre a euforia e a disforia, a paixão e a morte, o heroísmo e a tragédia, e sintetiza magistralmente a linhagem de varões com “numa mão a espada e noutra a pena”, figurações humanistas pontilhando a História luminosamente e inscritas como símbolos de uma sua hermenêutica. No seu “gládio”, vibra a memória do do Fundador e do do Condestável, de graálica sugestão, que Pessoa evocará, e, de algum modo, ele verte-se na pena epopeica, ambos iluminados por áureo projecto (António Quadros).

Nesse enlace, Camões também protagoniza paroxisticamente a confluência genológica (tragédia, épica e lírica) “[n]a história funesta, inexorável,/ do Génio morto à fome, indignamente” e o “o choro masculino/ Do Génio contra a noite do Destino!”[i]. É, nas palavras de Quadros, “rapsodo” de “voz angustiada, iluminada, teleonómica do seu [de Portugal] ser profundo” cuja obra, embebida de “herança”, vocaliza uma “prece” e opera uma “poïesis transfiguradora”, “esculpi[ndo] a fisionomia espiritual da Pátria” [7].


TERCEIRO.
Porque a sua obra, em especial, a épica, constitui uma verdadeira “enciclopédia da tribo” (Eric Havelock) ou “livro de cultura” (Iuri Lotman): “cápsula do tempo”, sintetiza o imaginário, as sensibilidades, os saberes e a gramática da cultura da sua comunidade, oferecendo-se como um “observatório” do seu momento histórico e um “museu imaginário” (André Malraux). N’Os Lusíadas, Camões fixa e organiza o nosso imaginário mítico, entretecendo a tradição oral e a escrita, o difuso e o concreto.

 

QUARTO. N’Os Lusíadas, Camões faz a ponte entre o mundo antigo e o seu contemporâneo alvorecer do futuro: na cartografia, na cosmovisão, na viagem para além do “mare clausum” dos Argonautas e afins, na caminhada em direcção ao “V[er], claramente visto” (Os Lusíadas, C. V, Est. 18) anunciador da Revolução Científica… Na Ilha dos Amores, a encenação do duplo prémio reunindo o amor e o conhecimento, culminando com a epifânica “Máquina do Mundo”, retoma os velhos mitos e anuncia uma nova progénie, “forte e bela” (IX.42.1-2), gerada na união entre o humano (nautas) e o divino/sobre-humano (ninfas), uma nova Humanidade, a do Futuro!

 

QUINTO. Camões tem a capacidade de comover os leitores, de mobilizar as massas, com textos em que o Povo “se mira” (Almeida Garrett), novos espelhos de autoconhecimento e formativos da comunidade (não apenas dos Príncipes) renovadores dos laços sociais, geracionais, transversais. Expressão disso, no 3.º Centenário, Teófilo afirmou serem Os Lusíadas um bastião da nacionalidade, desde a Restauração à Revolução liberal e ao ideário republicano, bebendo no velho “Evangelho Português” mencionado por Fernão Lopes (Crónica de D. João I, cap. 159) e mais atrás ainda, na “Nova Aliança” de Ourique, pedra angular do mito nacional onde o programa histórico se sintetizara, anunciando a independência e o império: "Na eloquência dos factos, em as três Revoluções de 1640, 1820 e 1910, em que Portugal reconquistou a sua autonomia e reassumiu a soberania nacional, Os Lusíadas actuaram como o livro que conserva a tradição de uma raça; bem merecem o título de Bíblia Lusitana, que sintetiza a sua potência moral" [8]

 

Enfim, outras razões poderia elencar nesta lista cuja vertigem é inevitável face a uma obra tão central, expressão mais do que nacional e peninsular, mas também de uma Europa em busca de si no que a excede, na sua ânsia de “mais azul” (Mário de Sá-Carneiro).

Suspendo-me.

 

Que as comemorações dos 500 Camões desenvolvam a reflexão, seja por impulso de iniciativa governamental (a Comissão Nacional nomeada ad hoc), seja por impulso de iniciativas da sociedade civil (com destaque para a Exposição Universal da Matriz Portuguesa – CAMÕES 500 Anos, que comissario (9) … e leia-se Camões!

 

E celebremos, também, o magnífico trabalho que a Fundação António Quadros, sob a liderança da sua presidente Mafalda Quadros, tem desenvolvido na sua missão pela cultura portuguesa!

 

Notas:

[1] - Mário COSTA. O Chiado pitoresco e elegante, Histórias, Figuras, Usos e Costumes. Lisboa, Câmara Municipal Lisboa, 1987, pp.68-70.

[2] - Discurso reproduzido em: https://leduardolourenco.blogspot.com/2011/06/dia-de-camoes.html.

[3] - Cf. Teófilo BragaHistória das Ideias Republicanas em Portugal, Lisboa, Vega, 1983, p.163-164. Alexandre CabralNotas Oitocentistas – I, Lisboa, Livros Horizonte, 1980, p.63.

[4] - Teófilo Braga. Camões e o Sentimento Nacional, Porto, Typographia de A. J. da Silva Teixeira, 1891, 275-8.

[5] - A mais importante do ciclo que Maria Isabel João analisa em Memória e império. Comemorações em Portugal: 1880-1960. Lisboa, Lisboa, Universidade Aberta, 1999.

[6] - António Quadros. Portugal, Razão e Mistério: A Trilogia, Rio Maior, Alma dos Livros e Fundação António Quadros, 2020, p.24.

[7] - Ibidem, pp.39-42

[8] - Teófilo Braga. Camões. A Obra Lyrica e Épica, Porto, Livraria Chardron, 1911, pp. 742-3.

[9] - Cf. https://www.exposicao-universal-da-matriz-portuguesa.pt/2024-camoes-500-anos/.

 

02 — Camões, por António Quadros,
em "Portugal, Razão e Mistério: A Trilogia", 2020.

 

Camões: Herança, Prece e Poïesis

O maior poeta dos Portugueses, o seu rapsodo, a voz angustiada, iluminada, teleonómica do seu ser profundo, viu publicada em 1572 a opera magna, a que dedicou os últimos anos de uma existência aventurosa e apaixonada. O poema Os Lusíadas não foi só a composição humanista, cultista e renascentista inspirada nos modelos clássicos de Homero e de Virgílio, não foi apenas a contrapartida epopeica e patriótica do seu lirismo platonizante, petrarquiano e conceptista, como não foi unicamente a reacção apaixonada de um idealista ferido pelo ambiente de uma nação caída no gosto da cobiça e na rudeza / duma austera, apagada e vil tristeza (Os Lusíadas, Canto X, 145) porque estamos essencialmente perante a expressão em termos épicos (a que não falta a sensibilidade lírica) de uma herança ou revelação recebida por via tradicional, de um apelo dirigido ao Rei, à aristocracia e ao povo, de uma prece ao divino e, enfim, de uma poïesis transfiguradora. Herança cultural, herança axiológica, herança humana e social, herança teleológica desentranhada dos sinais visíveis de uma longa experiência histórica, trazida à tona da consciência desde os recessos do seu inconsciente arcaico, lida na identificação natural com um destino colectivo e na vivência dolorosa de um quotidiano decaído, mas ainda não totalmente cindido da grandeza antiga e porventura a tempo de ser salvo do mergulho definitivo na insignificância ou no anonimato históricos, herança que Luís de Camões, o lírico, o aventureiro, o apaixonado, a partir de certa altura da sua vida em verdade recebeu, reconheceu e assumiu como uma revelação deslumbrante, a que valia a pena dedicar os dias, os meses, os anos, o melhor do seu ser, consumido no fogo e no entusiasmo de uma grande obra poética, não apenas expressiva, mas sobretudo criacionista. Em seu redor viu o edifício em escombros, o rio faiscante vindo de longe agora cortado e desviado, a revelação transformada em segredo íntimo da sua alma, por muitos esquecida e só por raros partilhada ainda. O poema arranca desta consciência dolorosa de uma queda histórica, estímulo ao dinamismo criacionista que o caracteriza e distingue, entre muitas outras epopeias clássicas e humanistas da época. [pp.39/40]

[...] Foi a partir de uma compreensão profunda do poema, não na sua face voltada para o passado, mas na sua face voltada para o futuro, no sentido de que Os Lusíadas contém poderosas sementes de idealismo e de criacionismo, capazes de fundamentar uma renascença nacional, que Leonardo Coimbra escreveu, no final do mesmo texto: faça cada português as suas pazes com Camões e, de novo, no Infinito, radiosa e feliz, a Pátria há-de sorrir. [«Camões e a fisionomia espiritual da Pátria»] [p.43]


A visão de Camões: Cosmologia e Harmonia do Mundo

Retomar Camões, hoje, em época em que uma nova versão de pátria caída no gosto da cobiça e na rudeza / duma austera, apagada e vil tristeza, se nos apresenta ou nos envolve de uma forma mais sombria ainda, mais nocturna e mais angustiosa, será rever e sobretudo reflectir sobre o seu destino, à luz da nossa experiência, mais pesada de quatro séculos, e do nosso pensamento de hoje, temperado pela longa batalha das ideias, no dealbar de um mundo disposto a transcender as ilusões, as alienações, as ligeirezas intelectuais e ideológicas destes últimos cem anos de positivismo e de materialismo, redutores da complexidade e da profundidade do espírito humano. Estas doutrinas parecem dominar hoje o mundo. Mas o mundo, incluindo Portugal, almeja outros horizontes, tem outros sonhos, quereria rumar para outras águas e outros continentes, que não são os do passado histórico, pois não se pode voltar atrás, mas também não são os das utopias iluministas, totalitaristas ou radicalmente pragmatistas, em que o melhor do ser do homem é violado, bloqueado ou anestesiado. [pp.43/44]

 

03 — «Exposição Universal da Matriz Portuguesa - Camões 500».
Informação.


A Exposição Universal da Matriz Portuguesa – Camões 500 Anos foi criada pela «Matriz Portuguesa – Associação para o Desenvolvimento da Cultura e do Conhecimento». A sua designação refere-se ao conjunto de actividades destinadas a celebrar o 500.º Aniversário do nascimento de Luís de Camões, durante os anos 2024/2026.

 

Comissão executiva: João Micael e Angélica Santos (Presidente e Vice-Presidente da Matriz Portuguesa). Comissariado: Annabela Rita.

Alto Patrocínio: Presidente da República, Dr.  Marcelo Rebelo de Sousa.

Apoio Institucional: Ministério da Cultura.

Objectivo: Celebrar e divulgar a influência cultural recíproca entre os Portugueses, os Países de Língua Portuguesa, e o Mundo, bem como a sua crescente importância no Mundo.

Apresentação: Dia 4 de Junho (passado) no Grémio Literário. A conferência inaugural foi proferida por Guilherme d’Oliveira Martins.

 

Todas as iniciativas realizadas, promovidas ou apoiadas pela Matriz Portuguesa em torno de Camões, estarão patentes na página da «Exposição Universal da Matriz Portuguesa – Camões 500 Anos».

 

NOTA: Com muito orgulho e sentido de identidade nacional, a presidente da Fundação António Quadros aceitou o convite da Matriz Portuguesa para integrar a Comissão de Honra das comemorações e participar num vídeo promocional através de uma leitura de Camões. Neste âmbito, a Fundação junta-se às comemorações realizando, em 2025, uma exposição biblio-iconográfica camoniana, com o apoio da Câmara Municipal de Rio Maior.
 
04 — A infância de Fernando Pessoa,
por António Quadros.

 

Sou louco e tenho por memória

Uma longínqua e infiel lembrança

De qualquer dita transitória

Que sonhei ter quando criança

 

Quem foi Fernando Pessoa? De poucos, como deste grande poeta, se poderá dizer tão acertadamente que a biografia é a obra. A sua vida decorre aparentemente sem incidentes, sem vagas alterosas, sem acontecimentos singulares. Uma infância banal, dividida entre Durban, na Africa do Sul, onde o seu padrasto, o comandante João Miguel Rosa era cônsul, e Lisboa, onde nasceu e passaria toda a sua vida. Uma adolescência e uma maturidade decorridas no isolamento, no convívio intelectual com amigos e companheiros, em cafés e botequins, em escritórios comerciais onde ganhou a vida como correspondente de língua inglesa. Pouco mais de notável teríamos para acrescentar, se por dentro, a biografia de Fernando Pessoa, não se revelasse como directamente antagónica deste quadro simples que em síntese apresentámos. Com efeito, para lá da sua face calma, dos seus gestos comedidos, das circunstâncias da sua vida, eis-nos perante um autêntico vulcão, vulcão de sentimentos, de ideias, de pensamentos, vulcão abrasador que, no paradigma do motor imóvel, foi o impulsionador do autêntico movimento em sua volta.

 

Mais interessante do que dizer que Fernando Pessoa nasceu em 13 de Junho de 1888, dia de Santo António, tendo morrido em 30 de Novembro de 1935 no Hospital de S. Luís em Lisboa; mais útil do que mencionar pormenores, como o, aliás pouco conhecido, de que foi baptizado Fernando António, não só por ter nascido no dia do santo, mas porque é tradição da família a ligação genealógica aos Bulhões e logo Fernando de Bulhões, que adoptaria o nome religioso de António; mais necessário do que falar do seu primeiro prémio de composição Iliterária em língua inglesa ou das dificuldades financeiras que de resto parece nunca terem constituído para ele um autêntico problema; mais verdadeiro do que referir os pais, Joaquim de Seabra Pessoa e Maria Madalena Pinheiro Nogueira — será em nossa opinião buscar os reflexos da sua existência que na própria cintilam. A quem, todavia interesse conhecer mais concretamente outras facetas da sua vida, recomendamos a Vida e Obra de Fernando Pessoa, de João Gaspar Simões, bem Como Fernando Pessoa — Notas a uma biografia romanceado em que o escritor Eduardo Freitas da Costa, primo do poeta, rectifica vários aspectos biográficos menos precisos deste livro.

 

Postas estas considerações iniciais, partamos, pois, à aventura, partamos à descoberta de Fernando Pessoa, no que ele mesmo revelou de si. Partamos  — mas tremendo por, de algum modo, violar aquela intimidade, aquele segredo de que tão cioso foi, aquele pudor de quem escreveu:

 

O horror metafisico de Outrem! / O pavor de uma consciência alheia / Como um deus a espreitar-me [Poemas Dramáticos. Edições Asa, p.120]

 

Resgatar-nos-á pensar que o fazemos, todavia como obra de amor e devoção: nunca por mórbida curiosidade ou por desejo de novo material para especulação. Resgatar-nos-á talvez o poder mostrar um Fernando Pessoa mais inteiro, um Fernando Pessoa no espelho que ele próprio fabricou...

 

Uma infância feliz? Assim parece. O poeta cresceu, viveu, sofreu, mas sempre o acompanhou a saudade dos dias infantis, com o seu sabor paradisíaco.

 

E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim. / O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo/ Fosse uma arma, uma voz, o eco duma canção/ Que fosse chamar ao me passado/ Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter. [Poesias, Álvaro de Campos]

 

Tão pungente foi nele esta recordação, que bastava um raio de luar em noite clara para a evocar:

 

O luar quando bate na relva / Não sei que coisa me lembra.../ / Lembra-me a voz da criada velha / Contando-me contos de fadas. / E de como Nossa Senhora vestida de mendiga / Andava à noite nas estradas socorrendo as crianças maltratadas... [Poemas, Alberto Caeiro, p.44]

 

Um raio de luar ou mesmo, numa sala de concerto, um ritmo, um acorde reencontrado, eram o suficiente para que mundo real em sua volta, subitamente sofresse uma estranha metamorfose:

 

O maestro sacode a batuta, / E lânguida e triste a música rompe... / Lembra-me a minha infância, aquele dia / Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal/ Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado / O deslizar dum cão verde, / E do outro lado / Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo./ Prossegue a música, e eis na minha infância / De repente entre mim e o maestro, muro branco, / Vai e vem a bola, / Ora um cão verde, / Ora um cavalo azul com um jockey amarelo. / Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância / Está em todos os lugares, e a bola a tocar música / Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal... [Poemas de Fernando Pessoa, p.32]

 

O poeta não esqueceu nada, nem a voz da criada antiga, nem a bola com o cavalo azul e o jockey amarelo, nem, evidentemente, a velha casa...

 

Era na velha casa sossegada, ao pé do rio... / As janelas do meu quarto, e as da casa de jantar também, / Davam por sobre umas casas baixas, para o rio próximo / Para o Tejo, este Tejo, mas noutro ponto, janelas, não chegava às mesmas janelas. / Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar alto…[Poesias de Álvaro de Campos, p.189]

 

A velha casa! A velha casa cheia para de mistérios para a criança de olhos abertos a todas as coisas diferentes do quotidiano habitual! A velha casa e a velha tia, símbolos de um mundo antigo, de um mundo eterno de mistérios que nunca mais o deixaria através da existência, pontes abertas para as primeiras fronteiras do maravilhoso.

 

Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longinco, / Da minha casa ao pé do rio, / Da minha ao pé do rio, / Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite, / E a paz do luar esparso nas águas!... / Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu... / Minha velha tia costumava adormecer-me, cantando-me / (Se bem que eu fosse já crescido de mais para isso...) / Lembro-me as lágrimas caem sobre o meu coração e lavam-o da vida, / E ergue-se uma leve brisa marítima dentro de mim./ Ás vezes ela cantava a «Nau Catrineta:/ /Lá vai a Nau Catrineta/ Por sobre as águas do mar... / E outras vezes numa melodia muito saudosa e tão medieval, / Era a «Bela Infantas... Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim /E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto/ Como fui ingrato para ela - e afinal que fiz eu da vida? / Era a «Bola Infantas... Eu fechara os olhos, e ela cantava: / Estando a Bela Infanta / No seu jardim assentada... / Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar /E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz. [Poesias de Álvaro de Campos, pp.190-191]

 

Romances antigos, quadras populares, um Portugal ancestral e tradicional ligava-se para o poeta ao calor de uma família e à paz de um lar que, adulto, não pôde ter.

 

Que noite serena!/ Que lindo luar! / Oue linda barquinha / Bailando no mar!/ Suave, todo o passado o que foi aqui de Lisboa-me surge... / O terceiro andar das tias, o sossego de outrora, / Sossego de várias espécies, /A infância sem futuro pensado. /O ruído aparentemente contínuo da máquina de costura delas, / E tudo bom e a horas, / De um bem e de um a-horas próprio, hoje morto. / Meu Deus, que fiz eu da vida? [Poesias de Álvaro de Campos, p.120]

 

Pode dizer-se que foi esse um tempo que nunca mais o abandonou, como saudade ora reconfortante ora dolorosa.

 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,/ Eu era feliz e ninguém estava morto. / Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, / E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer. [Poesias de Álvaro de Campos, pp. 283-284]

 

O poeta virá a atribuir à perda. deste universo confortável e confortante, as suas futuras dores e angústias:

 

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), / O que eu sou hoje é terem vendido a casa / É terem morrido todos, / É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio... / No tempo em que festejavam o dia dos meus anos… / Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! / Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, / Por viagem metafisica e carnal, / Com uma dualidade de eu para mim... / Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! / Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui… / A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos nas loiças, / Com mais copos, / O aparador com muitas coisas doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado, / As tias velhas, os primos diferentes, tudo era por minha causa, / No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. [Poesias inéditas de Fernando Pessoa (1919-1930), p.53]

 

É, porém, a lei da vida, a irrecusável lei do tempo: os seres são corrupção e mudança. Morre a infância? Não inteiramente. Pois não são os loucos, os sonhadores, os poetas, precisamente aqueles que albergam dentro de si o calor sempre vivo das suas vivências infantis?

 

Sou louco e tenho por memória / Uma longínqua e infiel lembrança / De qualquer dita transitória / Que sonhei ter quando criança. Que quis, que sonhou, porém, a criança? Fernando Pessoa, curiosamente, reverte agora os papéis e diz: Quando era criança / Vivi, sem saber, / Só para hoje ter / Aquela lembrança. / É hoje que sinto / Aquilo que fui. / Minha vida flui, / Feita do que minto. / Mas nesta prisão, / Livro único, leio / O sorriso alheio / De quem fui então. [Poesias, de Fernando Pessoa, p.189]

 

Quem foi, então? Foi o que tudo possuiu porque, tudo lhe esteve aberto e disponível, o mundo e a fantasia, em dias e momentos que, pelo seu carácter maravilhoso, se situaram fora do tempo e do espaço:

 

Não sei, ama, onde era, / Nunca o saberei... / Sei que era primavera /E o jardim do rei... (Filha, quem o soubera!...). Que azul tão azul tinha / Ali o azul do céu! / Se eu não era a Rainha, / Porque era tudo meu? / (Filha, quem o adivinha?). /..... Conta-me contos, ama. /Todos os contos são / Esse dia, e jardim e a dama que eu fui nessa solidão... [Poesias, de Fernando Pessoa, pp.79-80]

 

Os dias passam, a criança cresce. E que estranha criança é esta! Sonha, fantasia, imagina-se vivendo estranhos destinos, inventa já heterónimos, personagens de si mesmo.

 

Desde criança, tive tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis coisas daquilo a que chamamos, minhas como as coisas daquilo porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar. Lembro, sim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou antes, o meu primeiro conhecido inexistente um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina a  saudade. Lembro-me, com menos nitidez. de uma outa figura, cujo nome já não me ocorre, mas que tinha o nome estrangeiro também que era, não sei em que um rival do Chevalier de Pas.... Coisas que acontecem a todas as crianças ? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto o vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo, que é mister um esforço  para me fazer saber que não foram realidade. [Páginas de Doutrina Estética, p.262 (carta a Adolfo Casais Monteiro)]

 

Real e irreal desde cedo como que se fundiram no espírito de quem, por assim dizer, nasceu poeta:

 

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este, mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Imaginação tão fecunda e prodigiosa mesmo que... ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo o outro, a quem sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o imediatamente, espontaneamente, como sendo um certo amigo meu, cujo nome inventava, e cuja figura - cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei e propaguei vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... tenho saudades deles. [Páginas de Doutrina Estética, p.262 (carta a Adolfo Casais Monteiro)]

 

Uma estranha criança, em verdade: povoando um universo mítico de amigos, dando realidade, além do Chevalier de Pas, a um Alexandre Search e a um A. A. Crosse, entre outros cujos nomes se perderam nas brumas do tempo. Quais os pólos da sua vida em Durban? Podemos supor que, entre os estudos e as leituras, que lhe valeram sucessivos prémios, o amor da mãe, intenso, quase excessivo, e a saudade de uma pátria miticizada pela imaginação, decorria o seu crescimento. Aos sete anos, dedicava ingenuamente A minha querida Mamã, o seu primeiro poema, em que justamente se reuniram os dois primeiros amores da sua infancia:

 

Ó terras de Portugal/ Ó terras onde eu nasci/ Por muito que goste delas/ Inda gosto mais de ti. [Elementos citados na Vida e Obra de Fernando Pessoa, de João Gaspar Simões]

 

As viagens entre Lisboa e a Africa do Sul não podiam, por outro lado, deixar de impressionar a alma deste sensível e deste imaginativo. [...] Da amurada do navio, o pequeno Fernando adivinhava na distância perfis de costas, de portos, de ilhas e sobretudo eram emocionantes as partidas e as chegadas. [...]

 

De regresso à sua cidade natal, a Lisboa, Fernando Pessoa deixa de ser aparentemente o nómada, o viajante: aparentemente, porque nunca mais perderá consciência simultaneamente física e intelectual do movimento, de que o homem não é aqui, neste espaço e neste tempo, apenas está e passa.

 

Por isso, se um lado do poeta se prende às raízes da velha casa, das velhas tias, das velhas baladas populares, outro lado, não menos real, experimenta uma pungente sensação de exílio. A sua pátria é menos uma pátria social (uma nação), menos física (um território), do que uma pátria espiritual, uma pátria cuja verdadeira expressão é a de uma verdade confiada como semente a desenvolver, aos poetas, aos artistas, aos filósofos e à língua, tesouro infinito, que aliás explorará em todas os cambiantes. Mais tarde dirá que «a minha pátria é a língua portuguesa».

 

Eis porque, ao reintegrar-se na cidade antiga, de Ulisses e do Tejo, ao evocar essa reintegração na infância distante, Fernando Pessoa exprime o paradoxo de, descrevendo Lisboa, amá-la, e conceptualizando-a, retirar-lhe logo a validade de uma presença autêntica no seu espírito. [...]

 

É nesta «Lisboa de outrora de hoje» que Fernando Pessoa passará da infância para a adolescência, lendo sempre, pensando sempre, imaginando sempre e experimentando os primeiros terrores e as primeiras dores de um ciclo de mediação. Preocupa-o agora sobretudo o problema da sua liberdade. Mais formado, mais amadurecido, pressente toda a espécie de entraves à sua liberdade interior. [...]

 

António Quadros, em "Fernando Pessoa",

Ática, 1960, pp. 19-30, colecção «A Obra e o Homem», n.º 3.

 

Nota: Citações identificadas pelo Autor.

 

05 — Reedição do romance «A Paixão de Fernando P.», de António Quadros.
Divulgação.

 

António Quadros é um pensador que tem o conhecimento das fontes em sua própria formação.

João Ferreira, em António Quadros: Obra Pensamento, Contextos, 2016.


A primeira edição deste romance foi apresentada no dia do nascimento do seu autor, 100 anos depois, a 14 de Julho de 2023, em Rio Maior.

Tendo-se o romance esgotado rapidamente, achámos importante proceder á sua reedição e apresentá-lo no último dia do tempo de centenário (13 de Julho de 2024) acrescentando-lhe treze ensaios de outros tantos autores, cada um com origem numa das quatro tertúlias realizadas sobre a obra em diversos pontos do país (Lisboa, Óbidos, Vila Nogueira de Azeitão e Porto).

Assim, esta segunda edição, revista e melhorada, integra estudos analíticos do romance por Anabela Almeida, Fabrizio Boscaglia, Joaquim Domingues, José Carlos Seabra Pereira, Lourenço de Morais, Manuel Cândido Pimentel, Manuel Dugos Pimentel, Manuela Dâmaso, Paula Mendes Coelho, Paulo Samuel, Pedro Martins, Ricardo Belo de Morais e Risoleta Pinto Pedro.

O livro reúne ainda o prefácio de José António Barreiros, a introdução de Mafalda Ferro e textos biográficos sobre o Autor.
 
06 — Entrevista a António Quadros (excerto),
por Marques Gastão.

 

Como encara, António Quadros, na sua qualidade de escritor, o fenómeno da criação literária?

"A chamada 'criação literária' (expressão deficiente, quer em cada um dos seus termos, quer no seu conjunto), tem quanto a mim uma finalidade que em termos hodiernos poderíamos chamar pragmática. Mais justo será dizer que se trata de uma poiêsis, de uma facticidade — um pequeno movimento concorrente para o Grande Movimento, um afluente alimentando o Rio, tal como este alimenta o Mar."

 

Que elementos a compõem, na sua opinião?

"Três elementos predominantes: o gnoseológico (procura da verdade), o ético (busca axiológica, expressão dos valores de bem, justiça, liberdade) e o estético (meio material, estilístico, imagístico, simbólico). Mais do que expressiva, a obra literária é comunicativa. O autor intenta imprimir a verdade que assume, no mundo que encontra à sua chegada (homem, sociedade), deduzindo dela os valores éticos que a obra contém, através dessa excepcional matéria expressiva, significativa, persuasiva, sonora, mágica que é a linguagem escrita. Fá-lo com maior ou menor grau de consciência: a arte pela arte na realidade não é possível porque a consciência humana é sempre projecção dinâmica e porque o objecto estético contém sempre um elemento activo e transmutador, quer na sua proposta quer na sua recusa."

 

António Quadros, como intelectual que conhece o valor do pensamento moderno ou contemporâneo, tem atrás de si o peso de uma verdade conhecida, a que se consagra o valor da Verdade ascensional, perante os conflitos dramáticos do nosso tempo. Referimo-nos a conflitos dramáticos do nosso tempo. Em segunda pergunta, perguntamos a António Quadros: E até que ponto, António Quadros, deve o escritor assumir uma posição responsável perante a sociedade?

"Já respondi implicitamente a esta questão. Vou mais longe: não só o escritor, mas todo o homem deve sentir-se responsável pela sociedade, contribuindo para a sua evolução. Mas o elemento exclusivamente social cada vez se afigura à reflexão esclarecida, insuficiente e até restrito. Pelo grão de espírito que possui, pela inspiração que o anima, pela razão de que é singularmente dotado, o homem tem diante de si a obra de redenção da Natureza inteira. Por outro lado, o social aparece como um dos estratos do homem, ao nível anímico. Mas não é o único."

 

Há, portanto, mais elementos?

"Há. O homem é responsável pelo Homem inteiro: assim, torna-se cada vez mais evidente que a sociedade é um capítulo da Antropologia. O escritor que não se assumir como homem na plenitude do seu dinamismo e de todas as suas virtualidades será inevitavelmente um frustrado no que mais importa."

 

E deve o escritor intervir diretamente nos problemas do seu tempo? Deve subordinar a sua arte a qualquer ortodoxia ou manter-se acima ou indiferente a quaisquer pressões ou solicitações e aliciamentos da sua época?

"Quanto à primeira parte da sua pergunta, respondo-lhe o que representa o produto da minha reflexão e experiências pessoais: tão nocivo é o escritor indiferente à problemática que vê à sua volta, como o escritor que confunde a sua missão com a do político. Literatura e política são actividades distintas, embora o escritor, como homem, seja um ser político por excelência. Mas a específica actividade política incide sobre os meios. O escritor será essencialmente o criador de problemas, analisando o comportamento humano e estudando as carências do homem, enquanto o político escolhe um caminho, um sistema, um partido, apostando por um tipo de soluções. Ora quanto às soluções, o escritor é sempre um cético e um exigente. Sabe que o movimento humano não se esgota com o triunfo desta ou daquela política. Há sedes de infinitos como imperativos do próprio pensamento, sempre insatisfeito."

 

E acha que o escritor é na verdade um homem livre? E em que sentido?

"A liberdade é um valor para que se tende, mas o homem nunca o pode realizar inteiramente, quer devido aos obstáculos exteriores, quer devido às barreiras interiores. Quase estaria tentado a dizer que os obstáculos exteriores (conflito entre o indivíduo e a sociedade) só desaparecerão no dia em que o homem vencer as suas barreiras interiores, que inibem a razão de ascender para lá das imagens falsificadas, dos conceitos enrijecidos, das paixões do eu, dos pseudo-racionalismos dominados por muitas utopias e ucronias de que não têm sequer consciência. A liberdade exterior apenas pode provir da libertação interior. Colocado o problema em termos unicamente sócio-políticos, caminharemos, como até aqui, de ilusão em ilusão."

 

Gostava que explanasse mais desenvolvidamente os seus pontos de vista...

"Com muito prazer. Transposta a questão para a personalidade específica do escritor, é evidente que apenas poderíamos falar em termos relativos. O único ser livre é Deus. Mas o homem possui desde a sua nascença o fermento de liberdade suficiente para o conduzir no seu progressivo conhecimento da Verdade. A Verdade é a medida da Liberdade, como é também da Justiça. Quanto mais liberto interiormente seja o escritor, melhor realizará esteticamente os valores que mencionei. O grande erro de todos os sistemas e de todas as ideologias, sejam elas estéticas ou dialéticas, é estabelecerem limites para a liberdade humana e para a liberdade divina. Quando alguém pretende falar em nome da História, imediatamente nega a liberdade. A História é movimento, mas movimento aberto, não previsível e não conceitualizado, na marcha para o futuro. O escritor insere-se no movimento histórico, defendendo esta perene abertura, isto é, contrariando a ideologia e o sistema."

 

Mas se a criação literária é um acto de liberdade, esta não está implícita no acto de criar ou esse acto não será bastante?

"A criação literária não é um acto de liberdade, mas é evidente que consiste num acto onde há liberdade, maior ou menor, na medida da consciência do próprio significado que encarrega. A grande dificuldade para o escritor do nosso tempo está em ser ele próprio e não o passivo seguidor de uma escola literária, devido à grandeza de um escritor e às reais limitações dos 'ismos' classificativos que o vinculam a um corpo de ideias rígido. Mas para o conseguir, precisa de esquecer ou desprezar o aplauso e o êxito, pois há sempre, em todas as épocas, determinadas escolas literárias que se organizam para dominar, influenciar, hipnotizar o público. É o motivo pelo qual tantos grandes escritores só são apreciados depois de mortos: em vida foram sempre rebeldes aos sistemas literários das respetivas épocas, quando estes não eram senão ideologias estéticas."

 

Quer-nos dar a sua definição de Arte?

"A arte é, no meu entender, a procura de Deus através da obra de criação. A definição pode parecer-lhe paradoxal ou mesmo obscurantista. Pretendo, no entanto, que seja realista. O homem em crise, a crise do homem, é uma questão fundamental da literatura contemporânea, não sendo a única. Consiste na irredutibilidade do homem às realidades temporais, quando este encontra na sua consciência o sinal de um dinamismo, que as transborda e transcende. Muitos se satisfarão com a justificação existencialista. Discordo dessa corrente, porque é de filiação racionalista, ao considerar o homem de natureza dissociada. Também o escritor, julgando-se livre, pode não estar liberto, ao ser cativo do racionalismo doentio, que separa o homem interior do exterior, o escritor do homem. Por isso, a literatura contemporânea mostra-se maioritariamente fragmentária, por muito que alguns críticos o neguem e aplaudam as escolas literárias que têm surgido nas últimas décadas. Fragmentária, e em muitos casos, incoerente. Ora a coerência é o que dá valor à liberdade. O espírito mais exigente descobre na fragmentariedade uma inferioridade fundamental. O escritor está, portanto, ao serviço de Deus, mesmo que este valor lhe pareça obscuro, longínquo e indecifrável. Repare-se que muitos escritores do nosso tempo, no plano literário, refletem de modo profundo e constante o conflito, que lhes é próprio, entre o temporal e o eterno, quer o conheçam ou não."

 

Quais os escritores que mais admira no passado e no presente?

"Não posso nem devo citar um nome, pelo que isso implicaria de negação de outros nomes não citados. Direi apenas que alguns escritores mais antigos e mais modernos me têm influenciado. Mas a admiração não significa, no meu caso, aceitação incondicional. Os mestres que segui, quis-lhes sempre muito como homens, mesmo conhecendo apenas a sua obra. Mas quando me julguei em pleno desenvolvimento do meu pensamento e da minha obra, tive a coragem e a responsabilidade de saber deles divergir."

 

E quais os que mais o têm influenciado?

"Parece-me que já respondi a essa questão. A influência é um caso de amor, em que quanto mais forte o amor, mais sincera é a capacidade de os discípulos divergirem dos seus mestres. Não posso negar as influências que recebi. Mas elas completaram-se num plano superior de reconhecimento dos valores essenciais. Creio que todo o escritor deve viver só. O seu próprio caminho deve ser solitário. A solidão apenas é possível na comunhão de um amor mais pleno que o amor recebido das influências."

 

Ainda uma última pergunta: poderia resumir a filosofia do seu pensamento?

"Se o leitor soube captar o sentido da entrevista, verificará que o meu pensamento e obra são orientados para a procura de Deus, que se manifesta na Natureza e no Homem, que se revela pela necessidade da Liberdade, da Justiça e do Amor. Creio no espiritualismo cristão como solução. Quando me decidi, foi a experiência e o pensamento que me fizeram optar. A liberdade da criação literária é a da poesia — amor em Deus e Deus no homem."

 

Esta entrevista com António Quadros demonstra um profundo comprometimento com a cultura e literatura portuguesa, reflectindo a influência de um pensamento cristão-espiritualista em sua obra e vida. Ela explora as responsabilidades do escritor, a natureza da criação literária e a busca incessante pela verdade e liberdade, tanto na literatura quanto na vida humana.

 

Em "Diálogos com escritores e artistas", de Marques Gastão, p.85.

Lisboa: Edições BS, 1983

 

07 "A Palavra", conto publicado em Histórias do Tempo de Deus,
de António Quadros.

 


O velho médico puxou rapidamente a agulha e disse, para o seu assistente:

 

— Dentro em pouco estará mais calmo. É mesmo provável que recobre a consciência e um semblante de equilíbrio mental.

 

O doente repetia, a intervalos irregulares: «Esi... Esi... Esi...».

O assistente observou:

 

— E sempre a mesma coisa, este som, esta palavra sem sentido...

 

E o Dr. Mendonça, meditativo:

 

— ... este sorriso, esta espécie de êxtase...

 

O médico mais novo, o Dr. Sá Pinto tomou o pulso ao doente, observando:

 

— Se ao menos soubéssemos o que ele diz... — Se ao menos soubéssemos o que ele vê!

 

O assistente perguntou, surpreendido:

 

— Como? O que ele vê?

 

O Dr. Mendonça lavava as mãos, vagarosamente. O gabinete branco, os instrumentos reluzentes, o cheiro a éter, o silêncio, o hospital isolado do mundo, os passos dos enfermeiros rodeavam-no hostis, agressivos. Sentia picadas na cabeça, doíam-lhe as costas, a mocidade passara há muito, e o remanescente idealismo das horas fervorosas de descoberta feria-o mais do que qualquer outra coisa. Acontecia-lhe identificar-se com os seus doentes, não como um médico solícito, mas como um irmão no padecimento. Disse:

 

— É o seu primeiro contacto com este doente?

— Sim, mas este tipo de paranoia...

 

O Dr. Mendonça voltou-se de frente para o jovem médico e sorriu, com uma ironia amargurada:

 

— Sabe, às vezes é bom esquecermos o que aprendemos. E, perante a expressão interrogativa do seu assistente:

— Dizem que a psiquiatria é ou será uma ciência positiva. E no entanto, tem de haver sempre algum empirismo no tratamento de um doente mental. Repare que, a partir de certo ponto, não há casos genéricos: há só casos singulares. E depois...

 

Calou-se por instantes. O paciente aquietava-se. A sua boca já não se abria e os seus braços estendiam-se, imóveis, ao longo do corpo. O Dr. Mendonça continuou:

 

— E depois, há outra coisa, algo que os livros não ensinam, algo de fantástico, como neste caso... Fantástico não será o termo exacto. Direi algo de simples, de tão extremamente simples, que não estamos talvez preparados para o entender. Diga-me, Dr. Sá. Pinto, o que vê neste homem?

— Uma paranoia não identificada.

— É tudo?

— Um funcionário público, casado, pertencente a um meio originariamente desafogado. Foi sempre uma pessoa... alheada. A mulher queixou-se de distracções, de ausências. Um dia caiu na rua, repetindo aquela mesma palavra de há pouco: esi... esi... Não era epilepsia. Submetido a tratamento psiquiátrico... mas o Sr. Doutor é que tem cuidado dele. E certamente não foi sem intenção que me fez a pergunta.

 

O Dr. Mendonça debruçou-se sobre o doente, levantou-lhe as pálpebras e passou-lhe como que carinhosamente a mão pelos cabelos. Disse:

 

— É que eu vejo muito menos do que isso, e ao mesmo tempo muito mais. Vejo... um homem. Você sabe o que é um homem? Que tremendo mistério! Um homem... Que sabemos da energia que o anima, da vontade que o faz, da razão que o impele? Um homem! Aponte-me o órgão da liberdade. E a matéria, do sonho. Diga-me, Dr. Sá Pinto, de que glândula extrai ele o poder de escolher? Não temos a mais leve suspeita do que seja um homem, tudo construímos sobre frágeis hipóteses, e não obstante, ousamos interferir com a sua alma... e no realizarmos esta acção de socorro reside porventura a nossa máxima dignidade. Insolúvel paradoxo!

 

O Dr. Sá Pinto olhou para o doente, um homem alto, de meia-idade, cabelos grisalhos, face crispada, já sem o sorriso de há pouco e disse, embaraçado:

 

—  Deve estar a acordar…

 

Mas o Dr. Mendonça continuava ainda a discorrer:

 

—  Diga que estou velho, se quiser, Dr. Sá Pinto, diga que estou ultrapassado, e tem razão. Mas por vezes, ao querermos curar um doente, dir-se-ia que tocamos um segredo que não lhe pertence, mas a todos, e que, em vez de o ajudarmos, é ele que nos ajuda a nós, que nos situa numa vida desconhecida e infinita. E chega o momento em que nos interrogamos: quem é o verdadeiro alienado, ou qual de nós é o mais alienado, ou de que é que ele, ou nós, estamos alienados? Desadaptação à vida social, desadaptação à vida psicológica, sim... Desadaptação pura, no entanto, ou relativa a uma outra, ancestral, esquecida, saudosa ou mesmo pressentida forma de adaptação?

 

Calou-se. Olhou de soslaio para o jovem médico, recém-formado, seguro de si. Este desviou a vista. O Dr. Mendonça disse:

 

— Tome essa palavra que ele diz... Quando acordar, vai ver, por muito que o interroguemos, esqueceu-a completamente. Falará muito, é um homem inteligente, culto, sensível, e você, como eu, vai surpreender-se a simpatizar com o seu ponto de vista e com a sua descrição da realidade. Todavia, algo está errado no que diz, ou então seríamos certamente nós os alienados. E por outro lado, dir-se-ia que há no seu espírito uma fonte inextinguível de confiança nas próprias contradições que exprime. É essa confiança que precisaríamos de destruir, e essa confiança parece ligada à incompreensível palavra que pronuncia. Aqui, o paciente resiste à análise. A palavra é a expressão de algum velho circuito inibitório ou é uma chave? E o êxtase que lhe brilha na cara é antes ou depois? Se a aprendêssemos, libertaríamos o doente, ou libertar-nos-íamos a nós próprios, à nossa sociedade, a nossa civilização? Ou ainda: enveredaríamos enfim pela síntese que nos falta, unindo dois saberes separados?

 

O doente mexeu-se, respirou fundo, distendeu-se muscularmente. O jovem médico perguntou:

 

—  Que faremos agora?

 

O Dr. Mendonça replicou, veemente segurando agora com força o braço do seu assistente, como que procurando obrigá-lo a ouvir:

 

—  Conhece o valor das palavras, Dr. Sá Pinto? São apenas sons que significam? A lenda de Ali Babá, por exemplo, essa lenda que nos encantou e aterrorizou na infância… Lembre-se: os ladrões chegavam até junto da caverna, pronunciavam algumas palavras, e o rochedo escancarava-se, e o tesouro fabuloso ficava à mercê de quem as soubesse dizer. Quer acreditar, Dr. Sá Pinto? Toda a vida lutei corpo a corpo com a loucura, e aconteceu-me frequentemente invejar os loucos, porque conhecem um mundo que jamais estará ao meu alcance. Esi... Esi... Que tesouro esta palavra nos levaria a contemplar... ou a possuir?

 

— Atenção, Dr. Mendonça.

—  Sim, está a acordar. Vá, sente-se aí, de modo a que ele o veja, mas em segundo plano. E tome notas do que ouvir. Já o interroguei várias vezes sempre na expectativa de que lhe aconteça dizer algo mais do que da última vez. E sempre diz. Mas é ainda pouco. Talvez você, neste ponto do tratamento, possa compreender melhor do que eu... Abriu os olhos!

 

Efectivamente, o doente acordara, entreabrindo as pálpebras e parecendo reconhecer o gabinete em que se encontrava. Disse, com voz ainda insegura:

 

—  Dr. Mendonça?

—  Sim, sou eu. Não serei uma imagem assim muito agradável para quem acorda, mas

é o que se pode arranjar... Cansado?

—  Muito.

—  Descanse um bocadinho, vá. Feche os olhos. Dentro em pouco estará como novo.

 

Fez-se o silêncio, no gabinete. Ouvia-se o esvoaçar de pássaros, no jardim que rodeava o hospital. Chegava também ali o ruído do trânsito lá fora, num outro universo. Automóveis que se apressavam, buzinando, grandes autocarros de dois andares, que avançavam expelindo anidrido carbónico e uma pesada respiração mecânica, para bichas de almas fastidiadas e impacientes, esperando-os para serem conduzidos a casa ou ao trabalho. O Dr. Mendonça escrevia alguns apontamentos numa ficha, enquanto o Dr. Sá Pinto tomava o pulso ao doente.

 

—  Sente-se melhor?

—  Sim, bastante melhor.

 

O Dr. Mendonça aproximou-se:

 

—  Experimente levantar-se. Bravo. Muito bem. Agora dê alguns passos. Assim... Para

dar exercício aos músculos. Vê como já se sente outro? Diga lá...

—  Tem razão, doutor. Está um dia lindo, não é verdade?

—  Um dia lindo, sim. Logo daremos passeio, quer? Mas será melhor deitar-se outra vez. E procure descontrair-se, peço-lhe. Feche os olhos. Pense... pense no que gosta de pensar, em montanhas silenciosas, pastores com os seus rebanhos, flores selvagens crescendo entre as rochas... essas paisagens do Marão, de que você me falou no outro dia, paisagens da sua juventude... Lembra-se do que me disse? Que aí era capaz de sentir a presença de Deus, na harmonia e na simplicidade da natureza. O regato, a água reluzindo ao sol, um pasto verde, um coelho que salta do mato... De olhos fechados, o doente parecia evocar as imagens de serenidade e paz que o médico lhe sugerira. Passaram alguns instantes. O Dr. Sá Pinto sentou-se. O Dr. Mendonça puxou uma cadeira para junto do sofá. Perguntou, em voz baixa:

—  Vamos conversar um pouco?

—  Como quiser, Dr. Mendonça.

—  Óptimo. Você pode ajudar-me, sabe? Ainda há pouco eu o dizia aqui a este meu jovem assistente, o Dr. Sá Pinto. Conhece-o? Olhe para ele! Um rapaz com futuro, pode acreditar. Mas ainda muito verde...

 

O doente voltou a cara, inexpressivamente. Pouco depois, o Dr. Mendonça perguntou:

 

—  O seu nome?

 

A resposta foi maquinal e distraída:

 

—  Manuel Vieira de Sousa

—  É casado?

—  Sou.

 

Fechara os olhos e respondia às perguntas com indiferença.

 

—  Como se chama a sua mulher?

—  Luísa.

—  Importa-se de me falar dela?

 

Desta vez, perdera toda a indiferença, numa transição brusca e inesperada.

 

—  É preciso, Sr. Doutor? Já lhe tenho falado tantas vezes a seu respeito!

 

O médico inclinou-se para ele e disse com firmeza:

 

— Sim, mas é um assunto que você rodeia sempre, que faz por tratar ligeiramente.

— O Dr. Mendonça não é meu confessor... Desculpe, mas quanto à minha vida íntima... Sabe por que perdi a fé?

—  Foi crente, não é verdade?

— Já não sei se fui. Mas havia problemas que dantes não me assustavam. É estranho, tenho a impressão de que estamos a falar doutra pessoa. Tudo isso foi há tanto tempo, na minha infância...

 

O Dr. Mendonça insistiu:

 

— Não se trata de uma, confissão... Eu queria ajudá-lo, o Dr. Sá Pinto também o queria ajudar. Não lhe peço que force a sua consciência. Mas sabe, nós, os médicos, somos às vezes lentos, nem sempre conseguimos tirar as conclusões mais lógicas... Se você conseguir falar naturalmente, como se eu fosse o seu melhor amigo, ou o seu irmão, é possível que lembre factos que lhe parecem insignificantes, e que na realidade são importantíssimos. Vamos, então. A sua mulher... quando a conheceu, era bonita?

 

O doente levou a mão à cabeça, alisando os cabelos. Perguntou:

 

—  Posso fumar?

 

O Dr. Mendonça replicou, estendendo-lhe um maço de cigarros:

 

—  Com certeza. E eu também vou aproveitar a sugestão. Dr. Sá Pinto, quer um cigarro?

 

Acendeu um fósforo, deu lume ao doente primeiro, depois ao seu assistente, finalmente acendeu o seu próprio cigarro. Insistiu:

 

— A sua mulher.

 

Procurando falar devagar, como se quisesse medir as palavras, empregando-as com precisão, o doente disse:

 

— ...eu achava-a bonita, sim, embora não fosse o que se chama linda. Mas desde que a conheci...senti que era ela, a que me esperava, e que eu esperava. Porque tinha uma doçura...uma tranquilidade...e eu precisava de uma segurança e de uma paz assim...precisava que alguém me ajudasse a olhar a vida como ela deve ser olhada. No entanto...a culpa foi minha...eu não correspondi...eu não estive à altura... eu...

 

—  Continue por favor. Por que diz que não correspondeu?

 

Tentando dominar-se, o paciente continuou:

 

— ...casei-me há dez anos, e tudo se passou mais ou menos bem nos dois primeiros anos...depois, não sei quando, ou se houve um momento especial...depois comecei a...como dizer...a sentir-me...asfixiado, ou melhor, dividido...uma parte de mim mesmo amava a Luísa e pertencia-lhe, mas outra parte...desprendia-se, afastava-se...e eu tinha a impressão de estar prisioneiro na minha casa, e chegava a pensar que a culpa era dela...e olhava-a então como inimiga, e as coisas...sim, as coisas também eram minhas inimigas, porque me obrigavam… compreende, Dr. Mendonça, obrigavam-me e eu não queria ser obrigado...o sofá da sala, por exemplo, um sofá verde, de ramagens, obrigava-me a sentar-me, ali, todos os dias… e a telefonia, obrigava-me o ouvi-la… e a porta da rua...eu sei que esta sensação não é natural...a porta da rua obrigava-me a sair e obrigava-me a entrar, e eu queria outra coisa, outra coisa, que não era entrar nem  sair, mas...não sei...e ainda...vou dizê-lo...é a verdade...o corpo de Luísa era belo e era um corpo que eu... desejava-o...mas era um corpo que estava ali...à minha disposição...e...como dizê-lo?...não me era possível rejeitá-lo, não me era possível não o querer...e por isso não me era possível amá-lo totalmente...e pior, muito pior, a alma de Luísa, o seu carinho, a sua paciência, a sua resignação, o seu amor, é horrível, mas...um dia bati-lhe, bati-lhe e ela chorava, e eu ria porque me sentia liberto, e logo vi que não era a verdadeira liberdade...e chorei com ela, porque o que eu queria era... simultaneamente...a presença e a ausência de Luísa, o desejo e a indiferença, não, não é bem isso...antes, amá-la sem a amar...melhor, o não a amar, amando-a...queria que o amor me transportasse para outra vida, mas não, tudo era demasiadamente breve e logo a seguir, era preciso regressar...ao movimento inútil...e logo, se assim era, o amor passava a ser como tudo o resto porque nada conseguia salvar...nada resgatava...era um ápice...uma ilusão...um sonho...

 

Manuel Vieira calou-se. Tremia. O Dr. Mendonça disse:

 

—  Compreendo o que quer dizer. Mas agora vamos descansar um bocadinho. Não acabou o seu cigarro...

 

O doente parecia não poder agora reprimir-se:

 

— Compreende? Pois eu não, não compreendo e não compreendia o que se passava comigo. E não foi por não ter procurado! Lia muito, pensava muito, extraía conclusões... Mas o desconcertante é que eu arranjava explicações para os meus actos, e não era capaz de os modificar. Era como se a consciência e a vontade fossem coisas completamente distintas e sem qualquer ligação uma com a outra. Eu lutava, pode estar certo de que lutava! Acontecia sentar-me num banco do jardim, sem coragem para voltar para casa, chorando como uma criança. Mas ao fim ganhava ânimo e lá ia para casa, e tinha momentos em que sentia uma paixão enorme dentro do meu peito...e tinha outros em que olhava para a Luísa com ódio... No dia seguinte saía a porta da rua, e ia para o trabalho, era chefe de secção num organismo oficial como sabe, e falava com os meus colegas...e discutia...e tinha opiniões...e exprimia as minhas ideias...e lá vinham essas horas em que eu já não tinha opiniões, nem ideias, nem sentimentos...porque para lá das opiniões...das ideias e dos sentimentos...havia outra coisa...não sei o quê...e parecia-me então que tudo em meu redor era irreal, ilusório, e que só poderia atingir...a verdade...quando me libertasse de tudo o que me tolhia...o trabalho...o sofá...a minha mulher...as coisas...o café...tudo isso eram...como se diz... grilhetas...cadeias… eu próprio era grilheta...a existência... vida... Diga-me, Dr. Mendonça, quando é que tem tempo para pensar...para se recolher...para descobrir o que realmente é... Quando, se a vida não nos dá tempo... intimidade...liberdade? Andamos sempre rodeados de pessoas...os outros não nos largam...querem que sejamos assim...ou assim...as coisas perseguem-nos...o mundo é contra nós...e muitos livros que li confirmavam o que eu sentia...simplesmente os que escrevem conseguem viver assim...eu não...e aconteceu-me...

—  Descanse agora uns minutos. Não quer outro cigarro?

— ... e aconteceu-me fugir...tentar fugir...largava tudo, fosse o trabalho ou a casa...e andava pelas ruas… ao acaso...andava, andava, e esquecia-me onde estava...quem era…andava até ficar cansado, todo o o dia...e de noite também...lembrava-me depois de tudo...e as ruas eram todas iguais, e as casas eram todas iguais, e as pessoas eram todas iguais… e a cidade era um labirinto, não tinha saída... Quem me pôs neste labirinto, pensava eu?...Que estou aqui a fazer? Que está toda esta gente aqui a fazer? Homens, velhos, mulheres, crianças...ricos, pobres, remediados...doentes e sãos...todos moribundos, a fazer o quê? Como não sentem que tudo vacila...que nada é sólido...que nada é certo...que as coisas passam...as pessoas...as almas...os sentimentos...e que não se pode pertencer a um mundo assim… que é preciso procurar... procurar... e eu as vezes, de súbito, via os homens andarem a volta, numa espécie de girândola...formava-se um túnel...um túnel cheio de vozes... negro...e eu percorria-o a correr...a correr...mas do outro lado era ainda o mesmo labirinto...e eu desanimava então, e juntava-me à procissão das gentes, andando como elas…voltando a casa...ao trabalho...à existência...a certa altura...

—  Está bem, Manuel Vieira, já me fez a vontade, agradeço-lhe, vou pensar no que disse e logo à tarde...

— ...a certa altura, continuou o doente, como se não tivesse ouvido o médico, pensei de mim para mim que era inútil...ama-se para quê? …trabalha-se para quê?...tem de haver uma razão ou nada vale a pena...mas uma razão autêntica...fatigamo-nos, destruímo-nos a construir interminavelmente a nossa habitação, mas quem nos deu essa ordem, e quem, no fim, nos vai pagar o esforço? Os outros?...mas porquê fazer alguma coisa pelos outros, se eles não nos respeitam, não nos compreendem, não nos querem livres...Não há liberdade no que nós fazemos...só fazemos o que as pessoas querem...porquê?...talvez porque a liberdade é uma outra ilusão...não há liberdade, ninguém é livre, é uma teia terrível, cada um é obrigado a obrigar e eu próprio também obrigo ao fugir e procurar a liberdade...tudo está marcado...não podemos agir senão ao sabor de leis que não nos pertencem...e portanto...fazer ou não fazer é o mesmo...pensar ou não pensar...querer ou não querer...há qualquer entidade imensa que nos leva consigo...para aonde?...Não o sabemos, ninguém o sabe...estudei astrologia...é verdade, doutor, o movimento dos homens está dependente do movimento dos astros...se não sabemos viver...se queremos uma impossível libertação... é simplesmente porque nascemos numa má conjuntura...não acredita na astrologia, Dr. Mendonça? Olhe que o meu horóscopo é perfeitamente exacto... até prevê as minhas confusões, as minhas perturbações…e qualquer pessoa o podia ter traçado logo à minha nascença...e não sou eu que penso assim, toda a gente pensa assim, ainda que dêem outros nomes há mesmo ideia...vivemos sujeitos às leis da necessidade...os astros...o meio...as condições sociais...as classes...tudo isto se equivale...então mais vale parar, doutor...porque eu não quero ser um fantoche, manejado por cordelinhos...então o que quero eu ser...o que posso eu ser...e eu posso sabê-lo, sinto que posso, fugindo às pessoas...fugindo ao trabalho...à minha mulher…às coisas...apostando...apostando apesar de tudo pela liberdade...que é inatingível, eu sei...mas...é contraditório...mas...

 

O Dr. Mendonça levantou-se e disse, com gravidade:

 

— Agora, Manuel Vieira, agora, recorde-se...aquela palavra de que lhe tenho falado... esi...diga comigo.

— Esi?

—  Sim, esi, esi...você às vezes diz essa palavra em sonhos.

—  Não sei dizer-lhe o que significa, Dr. Mendonça.

— Quando você pronuncia essa palavra...

— Quando eu a pronuncio...

— Dir-se-ia que...

— ...que...

— ...é sem dúvida uma palavra que um dia o impressionou, por qualquer motivo. Havemos de lhe encontrar a pista, esteja descansado. E oiça, quanto aos seus pensamentos, também eu frequentemente, todos nós, me sinto cansado de tudo, e o mundo parece irreal. Mas isto é um engano.

—  ... é um engano...

—  O mundo é real. Nós somos reais. O nosso destino é aqui. Somos livres, porque podemos escolher, e porque a nossa vontade é capaz de ser forte, sobrepondo-se às influências alheias.

—  ... ás influências alheias…

— Deus conferiu-nos a liberdade para o bem e para o mal. E fê-lo decerto para nos apresentarmos diante d’Ele senhores de nós próprios, vitoriosos pelos nossos próprios meios.

—  ... pelos nossos próprios meios...

 

O Dr. Mendonça olhou para o Dr. Sá Pinto:

 

— Deixámos que se excitasse e que falasse demasiadamente. Agora está cansado. Já quase não ouve o que lhe dizem. Dê-lhe uma injecção sedativa, por favor.

 

O Dr. Sá Pinto aproximou-se, preparou a injecção. O Dr. Mendonça sentia as picadas na cabeça, cada vez mais fortes. Mas não podia calar-se, porque as palavras do doente, a sua angústia, o seu desânimo, e apesar de tudo o fio de esperança que parecia sustentá-lo, o tinham tocado fundo:

 

— Nós progredimos, Nós avançámos imensamente. A nossa religião, a nossa cultura, a nossa ciência são superiores a tudo o que até nós houve. Isto é verdade. Isto não se pode negar. Mas... há coisas que não batem certas. Estes homens destruídos, que nós não somos capazes de ajudar... dir-se-ia que nos trazem à memória alguma coisa! Ou que nos mostram algo que ficou esquecido! Ou então algo que está lá para a frente, muito para a frente! As pessoas impacientam-se com todas as formas de alienação. E todavia, no fundo da sua impaciência, há uma suspeita informulada, há um terror impreciso, há um pânico instintivo. É a doença sagrada... porquê? As pessoas sentem-se inseguras diante dos loucos, mesmo que sejam inofensivos, quase normais, e sabe, eu penso que esta insegurança é boa. Devemos estar inseguros. Devemos pensar o que não foi pensado. Devemos suspeitar, porque a vida é infinitamente complexa e nunca ninguém lhe deu a volta, ainda que certos sistemas julguem tudo explicar. O que pensar desses que vivem num universo de certezas? Acaso serão menos loucos do que esse desgraçado que aí está? Depois do ocidente, atingimos o oriente, e depois do oriente, um outro ocidente... Esi... Que chave, e para que mundos, e a que tesouros nos levaria esta palavra?

 

O Dr. Sá Pinto disse:

 

— Adormeceu.

 

O Dr. Mendonça respondeu:

 

— Sim. Pode chamar o enfermeiro.

 

Depois deu uma leve pancada nas costas do jovem médico, e disse:

 

—  Você pensa talvez que já estou a ficar parecido com eles? Que sou um velho maníaco, a pedir reforma? É capaz de ter razão, é capaz de ter razão...

 

A luz entrava a jorros pela janela. Era um destes dias maravilhosos de Outubro, em que apetece cantar alto e sorrir à natureza. Ao sair para a rua, absurdamente alegre por estar vivo, e poder lutar e vencer, o Dr. Sá Pinto viu que o autocarro estava prestes a deixar a paragem. Deu uma corrida e, de um salto, agarrou-se ao varão, Eram horas do almoço! Tinha fome!

 

O Dr. Mendonça continuava no gabinete, a ordenar os seus apontamentos. Encheu um copo de água e tomou uma aspirina. Sentia que os seus passos eram mais pesados e que os seus gestos eram mais vagarosos. Tinha Os cabelos brancos. Quantos anos lhe restavam ainda de vida? Quando era novo, quando principiara a exercer clínica, depois dos brilhantes exames finais da Universidade, acreditara que a vida não teria segredos para ele. Mas agora... Lentamente vestiu o sobretudo, percorreu o longo corredor branco, atravessou o jardim. Por detrás das vidraças do hospital, ao olhar para trás, viu faces imóveis, olhos parados que Ilhe seguiam os movimentos, braços caídos ao longo do corpo, uniformes cinzentos, cortados em série. Sem dar por isso, ao sair o portão, ao procurar um táxi, dizia em voz baixa:

 

—  Esi... Esi... Esi... 
 
08 — Livraria António Quadros.

Obra em Promoção até 14 de Agosto de 2024.

Autoria: António Quadros.

Título: Portugal, Razão e Mistério – A Trilogia.

Introdução e Agradecimentos: Mafalda Ferro.

Nota Prévia: Joaquim Domingues.

Portugal, Razão e Mistério, Uma reflexão: Pinharanda Gomes.

Introdução à 1.ª edição: Francisco da Cunha Leão.

Portugal, Razão e Mistério, Uma reflexão: Pinharanda Gomes.

Posfácio «António Quadros, Herança, Diálogo e Legado»: Pedro Martins.

Entrevista a António Quadros: Antónia de Sousa, 1993.

Edição — Lisboa: Alma dos Livros | Fundação António Quadros Edições, 2020.

Concepção, Coordenação geral, Organização: Mafalda Ferro.

Transcrição do Livro III (manuscrito): Joaquim Domingues.

Conversão de texto dos dois primeiros volumes e da Entrevista a AQ: Fundação António Quadros (Mafalda Ferro, João Lourenço, Nicole Domingos).

Apoio editorial, Revisão: Joaquim Domingues | Pedro Martins.

Revisão editorial: Joaquim E. Oliveira | Alma dos Livros.

Paginação: Ana Soromenho | Alma dos Livros.

Desenho de capa: Vera Braga | Alma dos Livros.

Impressão e acabamento: Artes Gráficas, Lda.

Obra dedicada: Aos meus irmãos, Rita e António. À minha filha Margarida. Aos meus filhos Francisco e João e aos meus netos Gonçalo, Mafalda, Teresa e Francisco, para que melhor entendam Portugal.


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