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Newsletter Nº 212 / 14 de Agosto de 2024 |
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Direcção Mafalda Ferro Edição Fundação António Quadros |
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ÍNDICE
01 — António Ferro e o Turismo, por Mafalda Ferro
02 — António Ferro e a sua melhor recordação de viagem, em entrevista concedida à Revista «Viagem».
03 — As vinte e cinco horas de António Ferro, por Luís de Oliveira Guimarães.
04 — António Ferro (autor), por António Ferro (prefaciador).
05 — Prémio António Ferro, instituído por Eduardo Brazão em 1957.
06 — Presença humana de António Ferro, despedida de Augusto de d'Esaguy.
07 — Notícias várias, da Fundação António Quadros e de entidades externas, parceiras da Fundação.
08 — Livraria António Quadros: Obra em promoção: "António Ferro 120 anos. Actas".
EDITORIAL,
por Mafalda Ferro.
António Ferro (17 de Agosto de 1895-11 de Novembro de 1956)
Levantando um pouco o véu, informamos que a Fundação prepara, para 2025 (130 anos depois do nascimento de António Ferros), um grande número de iniciativas que suscitarão, de certeza, o interesse de muitos.
Até lá, como de costume, a newsletter de Agosto, mês do seu nascimento, é-lhe muito especialmente dedicada: 129 anos depois...
Selecionei especialmente para si um conjunto de textos, recolhidos no acervo documental e bibliográfico da Fundação, que poucos conhecem, para que conheça um pouco melhor a personalidade e o trabalho de António Ferro.
Sei que vai gostar.
Boa leitura e Boas férias!
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01 — António Ferro e o Turismo em Portugal (1933-1949),
por Mafalda Ferro
Na primeira metade do século XX, não existia uma verdadeira barreira que distinguisse propaganda, publicidade nacional, informação e turismo. Em muitos casos, essas actividades eram asseguradas por jornalistas que, muitas vezes, eram designados como propagandistas, como sucedeu com António Ferro. O termo propaganda não tinha, então, a acepção profundamente negativa que viria a ganhar logo após o final da II Guerra Mundial. Esse carácter negativo foi ganho pelos excessos de condicionamento e manipulação a que as máquinas de propaganda dos estados autoritários, derrotados nessa guerra, tinham sujeitado os seus cidadãos. Não admira, por isso, que em 1945 o organismo dirigido por António Ferro, o Secretariado da Propaganda Nacional, tenha visto a sua designação ser alterada para Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, escapando à conotação negativa que o termo “propaganda” lhe podia conferir, no contexto da geopolítica do pós-guerra e, dessa forma, melhor definindo os âmbitos da sua acção, a informação jornalística, a cultura popular e o turismo, âmbitos em que Ferro pretendia deixar a sua marca.
Para que se entenda a relação de António Ferro com o Turismo em Portugal durante os primeiros 16 anos do Estado Novo, é necessário que se dê a conhecer a sua intensa paixão pelo jornalismo e, como, através dele, viajou por três dos continentes, Europa, África, América.
Depois de uma juventude fortemente ligada às tertúlias modernistas e aos intelectuais da revista «Orpheu», da qual foi, apenas formalmente, o editor, António Ferro ingressou no primeiro curso de Direito da Universidade de Lisboa (1913/1918). Viria a abandonar abruptamente esse curso no último ano quando, em Dezembro de 1920, por sugestão de Leal da Câmara, propôs ao jornal «O Século» partir para a recém-criada república de Fiúme para fazer uma reportagem sobre Gabriele d'Anunzio e a sua ação ultranacionalista. Embora tivesse já desenvolvido alguma actividade jornalística desde 1915, foi com a reportagem a Fiúme que António Ferro abraçou definitivamente uma longa carreira de jornalista internacional, sempre em movimento, até ao ano de 1933.
No jornalismo, assumiu diversos cargos em periódicos como «O Jornal», «O Século», a «Ilustração Portuguesa», e o «Diário de Lisboa». No entanto, foi desde 1923, enquanto enviado especial do «Diário de Notícias» que se tornou um viajante permanente, verdadeiro globetrotter, turista de alma e coração, ávido de ver, conhecer, saber, aprender. Apaixona-se por diferentes usos e costumes, artesanato, arte e literatura e está atento aos talentos e à política de cada um desses países. Atravessando fronteira após fronteira, entrevista os Grandes da Arte, do Cinema, da Moda, do Teatro, da Literatura e da Política, temática à qual se dedicou muito especialmente, extremamente interessado nas figuras dos «Chefe de Estado de regimes autoritários», em que procurava traços de figuras fortes que tanto o tinham seduzido anteriormente, em figuras como Sidónio Pais e Filomeno da Câmara. Em Dezembro de 1932, no âmbito do seu trabalho, acolheu com entusiasmo a possibilidade de entrevistar Oliveira Salazar para o «Diário de Notícias», num conjunto de entrevistas que ficou célebre e que viria a ser uma peça fundamental na afirmação política do Presidente do Conselho e do próprio regime do Estado Novo.
Em 1927, António Ferro tinha publicado Viagem à Volta das Ditaduras (Lisboa: Empresa «Diário de Notícias», 1927), volume no qual reuniu entrevistas aos ditadores Mussolini, Primo de Riviera e Mustafa Khemal; em 1929, publicou Praça da Concórdia (Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade) com entrevistas a figuras francesas da vida intelectual, artística, industrial e política; e, em 1933, Prefácio da República Espanhola (Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade) registou as entrevistas realizadas, em 1930, a personalidades espanholas como Miguel de Unamuno, Ortega y Gasset, Ramón de Valle-Inclán, Sánchez Guerra, Indaleccio Prieto e Marcelino Domingo.
Para além do jornalismo, António Ferro começara a desenvolver algumas acções oficiais de propaganda, nomeadamente a organização do Congresso da Crítica de Lisboa, em 1931, e várias sessões de divulgação cultural com intelectuais franceses, na Casa de Portugal em Paris. Ferro sentia-se um verdadeiro cidadão cultural de Paris e essa cidade fascinou-o até ao final da vida. Esse foi um excelente curriculum para que Salazar, fascinado pelo seu entrevistador, em 1933, o convidasse a dirigir um novo Organismo, o Secretariado da Propaganda Nacional.
Do nosso ponto de vista, António Ferro terá aceitado o cargo por acreditar que o seu trabalho se desenrolaria sobretudo na esfera do jornalismo. Contudo, esse trabalho também englobava todas as tarefas associadas à feitura, tratamento e registo da imprensa publicada em Portugal ou no estrangeiro sobre Portugal e também o tratamento e publicação dos discursos de Salazar.
António Ferro não veio para a política, não veio para os cargos públicos, sem bagagem. Tinha já um nome nas Letras, no Teatro, na Ficção, na Reportagem, batalhara, escandalizara, e muitas vezes triunfara ruidosamente. Não foi o Secretariado da Propaganda que o fez. Foi António Ferro que o fundou, o ilustrou, e projectou aquém e além fronteiras. André Malraux não é um peso nem um puro ornamento na obra de restauração nacional do general De Gaulle: Eleva-a, exalta-a, dá-lhe uma nota de alta cultura, de gratuitidade, de espiritualidade. Com Ferro, o que de princípio era, no Secretariado, acentuadamente informação e propaganda, a breve trecho desintegra-se da finalidade apologética, intencionalmente política para ganhar a perspectiva, a altitude duma política do Espírito.
Por isso, houve realmente momentos altos no Secretariado. E o primeiro deles foi quando o seu chefe se encontrou familiarmente rodeado dos poetas, artistas, músicos, cineastas, actores, arquitectos e decoradores da geração nova e lhes deu trabalho, uma chance, um incentivo novo, um motivo novo de crer. A muitos lançou-os, a outros, consagrou-os; e a todos iluminou ou alentou com os clarões multicores do seu espírito vário, voraz e intranquilo, tocado da inquietude moderna e vivificado pelo calor irradiante num grande coração que se oferecia, que não se negava, aberto a tudo...
Foram, aliás, estas qualidades que fizeram de António Ferro um grande jornalista e definitivamente lhe outorgaram um lugar proeminente na galeria e linhagem ilustre do jornalismo moderno.
M. N. de M., em «Diário Popular, 27-10-1968.
FAQ/02/0072/00002
Paulatinamente, Ferro foi ampliando o âmbito da acção do Secretariado, através da criação, com o beneplácito de Salazar, de um conjunto de projectos ligados à cultura e ao turismo, temas que realmente o apaixonavam e se entrelaçavam. Salazar acolheu as suas iniciativas como parte da sua própria estratégia de propaganda, mas para Ferro, essa estratégia integrava uma importante missão na qual, intrinsecamente, ele acreditava: o traçar de um plano de Turismo e de Cultura, dando a conhecer, aos portugueses e aos estrangeiros, o que de melhor existia em Portugal.
No âmbito das suas funções, António Ferro foi, por diversas vias, conseguindo apoiar as obras de músicos, artistas e intelectuais, promovendo os seus talentos, independentemente das suas orientações política, sexual, social ou religiosa. Se no início das suas funções foi politicamente secundado por Salazar, o passar dos anos foi-lhe granjeando diversos conflitos, em grande medida devidos à sua forma de estar e agir.
Durante os 16 anos que trabalhou no Secretariado da Propaganda Nacional — que, em 1944, viria a ser substituído pelo Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo — muitos foram os projectos que Ferro idealizou e viu concretizar, em grande medida por sua responsabilidade, dando a conhecer Portugal, o seu território, a sua História e a sua cultura.
Escrever acerca do director do Secretariado da Propaganda Nacional e do Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, até ao ano de 1949, significa falar de um sem-número de actividades e iniciativas que influenciaram as representações turísticas até aos dias de hoje
Cândida Cadavez, em "A Bem da Nação". Lisboa: Edições 70, 2017
Em 1935, Ferro convidou uma plêiade de individualidades estrangeiras (Maeterlinck, Pirandello, Gabriela Mistral, Unamuno, entre muitos outros) a visitar Portugal, preparando e concretizando, para o grupo, um interessantíssimo plano de iniciativas turísticas que tiveram lugar em Lisboa, na Curia, em Sintra e em Viana de Castelo. A partir desse ano, Ferro foi o grande obreiro da participação de Portugal nas grandes exposições Internacionais, como as de Paris (1937), e de Nova Iorque e S. Francisco (1939). Em 1940, foi um dos principais responsáveis pela Exposição do Mundo Português, cuja dimensão internacional acabou por ficar limitada à presença do Brasil, devido ao início da II Guerra Mundial, exposição que, no nosso entender, foi a mais importante representação turistíca realizada, até hoje, em Portugal. Em todas essas exposições as dimensões turísticas e culturais foram fundamentais, promovendo o país, externa e internamente.
Concebeu Concursos de Montras, de Apeadeiros, de Estações Floridas, de Cartazes de Turismo, de Prémios Literários, de Música, de Arte, de Cinema e de Turismo. O concurso mais destacado, o da «Aldeia mais Portuguesa de Portugal», foi realizado em 1938. Promoveu os Jogos Florais, as Festas de Maio Florido, os Cortejos Históricos, as Festas do Duplo Centenário de 1140 e 1640 e as Marchas de Lisboa, estas últimas pensadas e coreografadas por Leitão de Barros.
Em 1939, inaugurou em Vilar Formoso, o primeiro posto fronteiriço, posto esse que, a partir de 1940, foi atravessado por refugiados fugidos aos alemães de Hitler, grande parte com vistos passados por Aristides de Sousa Mendes. Lembramos também o caso do casal Arpad Szenes Vieira da Silva que, por esta fronteira, entrou em Portugal contra a vontade de Salazar, mas com a ajuda de António Ferro. Em Vilar Formoso, existe, desde 2017, por iniciativa de Margarida M. Ramalho, o Museu «Vilar Formoso, Fronteira da Paz» que devido ao elevado número de visitantes estrangeiros, deu origem ao chamado «Turismo Judaico».
Inspirado pelos ballets rousses, que tinham actuado em Portugal entre 1917 e 1918, criou, com a colaboração do bailarino Francis Graça, em 1940, os «Bailados Portugueses Verde Gaio», a primeira companhia de bailado profissional portuguesa. Essa companhia, com direcção, argumentos, cenários e figurinos de artistas portugueses, divulgava, através da dança, os usos e costumes, o folclore e os trajes, as lendas e aspectos da História de Portugal.
Ainda em 1940, como forma de incentivar o Turismo em Portugal, inaugurou a Estalagem do Lidador em Óbidos, considerada hoje como o protótipo das futuras Pousadas que viria a inaugurar entre 1942 e 1948, e também o Hotel de Castelo Branco, este em 1945. Para que tudo funcionasse em conformidade, foram criadas, na época, as Brigadas Hoteleiras que inspecionavam e aconselhavam as unidades hoteleiras, para que nada falhasse ou faltasse ao turista. Também, com esse objectivo, em 1941 o SPN publicou a Cartilha da Hospedagem Portuguesa: Adágios novos para servirem a tôda a hospedaria que não quizer perder a freguesia, com desenhos de Emmérico Nunes e dizeres de Augusto Pinto. Esta cartilha foi elaborada de forma a poder ser entendida por quantos tinham a seu cargo casas que serviam os turistas, mesmo que não soubessem ler, o que acontecia frequentemente.
Em 1941, criou a revista «Panorama, de Arte e Turismo» cuja 1.ª série, de 39 números, António Ferro dirigiu com o apoio de artistas, escritores e agentes de turismo, até ao ano da sua partida para Berna, em 1949. Através da «Panorama», dava trabalho a muitos que, não fora ele, nunca o conseguiriam no Portugal de Salazar.
O acervo museológico do Museu de Arte Popular, que Ferro inaugurou em 1948, reunia peças de artesanato provenientes de todas as províncias portuguesas, em materiais como o barro, a cerâmica, a madeira, o vime, a verga ou o tecido. O Museu estava dividido em províncias ou regiões e cada uma dessas zonas patenteava uma casa decorada com peças de artesanato, instrumentos de trabalho e manequins tipicamente vestidos a rigor. Para cada província, foi pintado um mural, executado por um ou mais artistas portugueses. O museu foi concebido de forma a que, no espaço exterior, houvesse artesãos a trabalhar nas suas obras, peças que seriam adquiridas e vendidas pelo próprio museu. Reconhecendo o interesse turístico da zona de Belém, Ferro sabia que ia ser um sucesso, mas, infelizmente, no ano seguinte, deixou Portugal. Este Museu foi o culminar da sua incontornável acção nos domínios da Cultura e do Turismo e, por isso mesmo, até hoje, silenciado.
Aquando da sua partida para Berna, António Ferro interrompeu deixando por terminar diversos projectos, entre eles o da sinalização pitoresca nas estradas.
Apesar do desinteresse de Salazar em contribuir para o enriquecimento cultural dos portugueses, António Ferro conseguiu criar um conjunto de equipamentos culturais itinerantes, os Cinemas, as Bibliotecas Ambulantes, o Teatro do Povo (que foi dirigido por Francisco Lage e Francisco Ribeiro) e outras acções culturais que, durante parte dos anos 30/40, percorreram o país, levando entretenimento e cultura a todos os seus cantos.
Com o apoio da equipa de artistas plásticos que reuniu em torno do SPN/SNI, António Ferro foi o responsável por uma coerente acção de comunicação, apoiada em peças gráficas e bibliográficas, produzidas por artistas portugueses com um grafismo alegre, moderno, original, talvez um pouco ingénuo, em vários idiomas, facto considerado hoje, mais do que nunca, crucial, principalmente quando a temática é o Turismo.
Alguns traços da identidade portuguesa, ainda hoje aceites como tal, foram concebidos pelo próprio Ferro ou, no mínimo, têm a sua mão:
— Amália Rodrigues que, embora fosse já uma artista bastante conhecida, actuou pela primeira vez em Paris, a convite de Ferro.
— O Galo de Barcelos, procurado e descoberto a seu pedido por artistas portugueses que, também por sua sugestão e supervisão, o decoraram com cores modernas e alegres, para apresentação em Feiras e Exposições, em território nacional e internacional.
— A Cerveja Sagres, com uma história curiosa, bem demonstrativa da criatividade, da capacidade de iniciativa e da vontade de Ferro para levar Portugal além-fronteiras. A história foi narrada por Nuno Pinto de Magalhães no Canal «Benfica TV», no «Dia Internacional da Cerveja», em Julho de 2013, e aqui reproduzida:
Em 1940, durante a 2.ª Guerra Mundial (1939/1945), os navios que vinham de Inglaterra eram geralmente torpedeados pelos barcos alemães. Como os ingleses queriam fornecer cerveja às suas tropas (em Gibraltar), o embaixador inglês falou com António Ferro para que ele arranjasse forma de fazer chegar cerveja a Gibraltar, até porque Espanha tinha saído de uma guerra civil (1936/1939). António Ferro pensou e, se bem o pensou, melhor o fez: Vamos lançar uma cerveja que tenha a ver com tudo o que Portugal representa. Sagres foi o nome por ele escolhido, como imaginário de onde sempre se partiu, para lançar uma cerveja de exportação. No ano seguinte, a Sagres tinha-se já tornado a cerveja de todos os portugueses e de todos os benfiquistas.
Salazar necessitava da acção de Ferro para colmatar áreas que seriam fracas, no que tocava à Cultura e ao Turismo.
Ferro, por sua vez, utilizava o SPN/SNI de Salazar para dinamizar a sua «Política do Espírito».
Assim, embora cada um tivesse os seus próprios objectivos, a concretização das actividades era concebida e executada por António Ferro, que depois conversava com Salazar.
No entanto, após o final da II Guerra Mundial, as divergências entre ambos foram-se avolumando.
Quando, em Abril de 1947, Fernanda de Castro escreveu a Salazar [FAQ/01/0688/00001] pedindo que deixasse o marido partir para Paris, Ferro pedira já o mesmo a Salazar pois, terminada a guerra, sabia que Portugal tinha que mudar, que a sociedade, o papel da mulher, tudo tinha que mudar, mas Salazar não o entendia dessa forma. Instalou-se então um conflito velado. Ambos, se apercebem de que o trabalho em conjunto, há algum tempo desarticulado, não tinha futuro. Salazar estava, quiçá…, cansado de Ferro, do seu protagonismo e das suas ideias que, terminada a guerra, o confundiam. Ferro — cansado do confronto sistemático com os ministérios, com alguns organismos e, quiçá…, com Salazar — tentou afastar-se do organismo que dirigia. Pensamos que Salazar ficou aliviado com o pedido de Ferro pois ficava liberto de ser ele a dar esse passo já que, silenciosamente, não lhe perdoava o desejo de sair de Portugal. Maliciosamente e com a sua habitual astúcia, Salazar fingiu concordar referindo que o melhor era Ferro ir primeiro para Berna e daí ser transferido para Paris, facto que nunca viria a acontecer. A realidade é que, embora sem um conflito público, Ferro foi enganado. O efeito prático dessa transferência foi Ferro ter sido exilado.
Em 1950, deu-se a derradeira despedida, Ferro iniciou uma nova vida, longe do seu país, da família e dos amigos, deixando inúmeros projectos por terminar.
António Ferro viria a morrer em Lisboa, seis anos depois.
Os seus amigos mais fiéis, os artistas, colaboradores em todas as iniciativas, por turnos, transportaram a sua urna. Salazar não esteve presente.
Ferro, tudo enfrentou com uma coragem, inicialmente feita de esperança, esperança essa que, com o tempo, foi esmorecendo, conduzindo-o a um estado de constante e profunda tristeza.
Em Roma, escreveu uma colectânea de poemas, que seu filho António viria a publicar postumamente com o título Saudades de mim.
Durante 16 anos, trabalhou com objectivos por si definidos, de acordo com os seus gostos e convicções, criando e dinamizando a sua «Política do Espírito».
A Cultura e o Turismo, nos primeiros 16 anos do Portugal de Salazar, só existiram, como tal, graças à acção de António Ferro, que é hoje apelidado por muitos como o maior “Ministro da Cultura” que o país já teve.
António Ferro não desistiu nunca de promover e enriquecer cultural e turisticamente (conceitos, no seu caso, impossíveis de compartimentar) o país que tanto amava. |
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02 — António Ferro e a sua melhor recordação de viagem,
em entrevista concedida pelo próprio à Revista «Viagem».
O ilustre escritor António Ferro, director do Secretariado da Propaganda Nacional, concedeu à Revista «Viagem», para a sua secção “Os nossos inquéritos”, uma interessante descrição sobre a sua melhor recordação de viagem. Não podemos resistir à tentação de transcrever nas colunas desta Revista esse artigo, cheio de curiosidade e onde António Ferro exprime, na sua maneira, as aventuras de reportagem:
Ao concebermos o tema deste inquérito, correlacionado, como lhe é próprio, com a índole duma revista de turismo, — o nome de António Ferro acudiu-nos logo à mente como a primeira individualidade a depor nele. Por um conjunto de atributos de que, abreviando, citaremos três apenas, por si sós justificativos da prioridade estabelecida a seu favor.
Acima de tudo, o notável relevo que de há muito usufrui nos meios jornalístico e literário; quer como porta-bandeira que foi dum movimento de renovação que agitou esses mesmos meios há uns vinte anos atrás e cuja influência seria um erro dizer-se já de todo desvanecido, pois ainda se descobrem reflexos seus na produção das mais recentes gerações; quer como autor de abundante e vitoriosa obra, cujas características são um estilo muito pessoal, faiscante de paradoxos, trocadilhos e imagens poéticas, e quase exclusiva predilecção pelos aspectos do mundo moderno e civilizado, dinâmico e progressivo, sadio e confortável, culto e feliz, limpo da fuligem de autos-de-fé e sem fealdades nem miséria, dum mundo, em síntese, que já houvesse voltado à oficina de Deus para recompor, brunir e afinar. Verdade seja que nem a todos é dado ver e gozar um mundo assim.
Mas se o destino quis, num raro capricho de generosidade, presentear com ele António Ferro, pendurando-o da sua Árvore de Natal (este o título, como se vê, simbólico e propiciatório, do seu livro de estreia), árvore que nunca mais secou nem se despiu de mimos e saborosos frutos, - como poderá surpreender-nos e escandalizar-nos que ele se mostre sempre optimista, que se empenhe num apostolado de elegância mental e de bom gosto, que proclame urbi et orbi a alegria de viver?
Considere-se em seguida ser António Ferro, sem exagero, um dos portugueses do nosso tempo mais viajados, tendo já percorrido não só a Europa de lés a lés como outros continentes. Por isso mesmo nos seus escritos vindos a lume avultam, em quantidade e qualidade, os de impressões de viagem. Novo Mundo, Mundo Novo é modelo no género, contendo o mais flagrante retrato do Estados Unidos da América do Norte. E é ai, no átrio do livro, que se encontra o retrato mais a carácter do próprio António Ferro, mostrando-no-lo entre as enxárcias do formidável transatlântico Leviathan.
Encarem-se, por último, as altas funções que há anos exerce, gerindo o Secretariado da Propaganda Nacional, comandando serviços aos quais a nossa época atribui importância equivalente à da tradicional diplomacia e em cujo desempenho António Ferro se esforça por conseguir que alcance projecção prática a promissora fórmula «política do espírito», já fecunda em estímulo e protecção aos artistas plásticos e que, naturalmente, virá algum dia a exonerar também os trabalhadores intelectuais do ingrato papel de cigarras que suportam com humildade o irónico desdém das prudentes formigas, ao jeito da velha fábula.
Para mais, a esses serviços, dotados do mínimo de burocracia e do máximo de imaginação, acham-se hoje adstritos os concernentes ao turismo.
Eis porque, numa destas ultimas tardes, decidimos procurar António Ferro no palacete de S. Pedro de Alcântara onde funciona o S. P. N. Se bem que a antecâmara do seu gabinete, decorada a vermelho e ouro, regurgite sempre de proponentes e visitantes, dando por vezes, no poliglótico sussurro que se alteia em seu âmbito, a impressão de se ter reconstituído ali um trecho da torre de Babel, - nesse dia a habitual concorrência afrouxara por qualquer fortuito motivo e, assim, dentro em pouco éramos recebidos pelo ilustre director desse activo organismo do Estado.
Acolhendo-nos ele com a espontânea afabilidade que, a-despeito da elevada categoria do seu cargo, continua a dispensar aos antigos companheiros do periodismo e das letras, sentindo-se ainda e sempre jornalista e escritor, dissemos-lhe sem rodeios ao que íamos.
— Quê, uma entrevista?! - surpreendeu-se, sorrindo, António Ferro. - Assim, de improviso, à maneira de operação de urgência? Não será preferível que conversemos apenas, podendo V. reproduzir depois aquilo que, da nossa conversa, interesse ao ponto de vista do seu inquérito?
A proposta agradou-nos sobremodo, confessamo-lo: ela vinha aliviar-nos das responsabilidades atinentes a uma entrevista em forma com alguém que alcançara grau de mestre nessa modalidade jornalística. E ficámos ambos conversando no à vontade de velhos amigos que, tendo ingressado na vida literária simultaneamente, mantêm há vinte anos uma camaradagem em que nem o menor dissídio pôs mancha. Oxalá a memória nos não atraiçoe muito, ao transmitirmos agora o que, das palavras de António Ferro, constituiu resposta à nossa pergunta: Qual a sua melhor recordação de viagem?
— Aquela que evoca e envolve a primeira grande viagem que fiz. Estou, de resto, convencido de que isto mesmo se dá com a maioria das pessoas. O momento que nos revela um meio diferente daquele em que até ali vivemos tem sempre qualquer coisa de mágica. Quem há que não sinta repassá-lo então um ingénuo orgulho de descobridor, na ilusão de que tudo quanto seu olhar abrange acaba de surgir do nada ou, pelo menos, nenhum outro ser humano o viu antes? Isto sobretudo na idade juvenil, quando o espírito caminha só em frente, erguido ao alto o facho da curiosidade. Porém a minha primeira viagem ainda se tornou mais emotiva do que é normal, devido ao seu carácter imprevisto e a mais circunstâncias absolutamente excepcionais que nela concorreram.
Vou resumidamente contar-lha. Eu estudava então Direito e, a par, experimentava forte sedução pela literatura, seguindo com grande interesse as missões jornalísticas no estrangeiro que por essa época entraram em voga entre nós. Uma tarde, ao subir descuidadamente o Chiado, encontro por acaso Leal da Câmara e o artista, sem dúvida impressionado pelo teor dos telegramas relativos ao acontecimento, lidos na imprensa da manhã, após dois dedos de conversa dispara-me a estupenda sugestão: «Eis uma sensacional reportagem a fazer, a da conquista de Fiúme! A expedição de Gabriel d'Annunzio está prestes a assenhorear-se da bela cidade do Adriático. Tentá-la-ia eu, essa reportagem, se fosse mais novo. Faça-a V. Dirija-se já ao Século, por exemplo, e proponha-lha. Lá, hão-de, inteligentemente, pressentir o alcance dela, o efeito que produzirá no público, e talvez lha confiem. Um talento moço e ousado, como o seu, imprimirá ao caso a vibração de que ele é susceptível». Confesso que a ideia, de tão inesperada, me pareceu no instante absurda. Que credenciais, as minhas, para me apresentar num grande jornal a requerer missão de tal envergadura, embora já estreado com duas ou três plaquetas de versos e de prosa impressionista e mais umas dezenas de artigos dispersos? Nas altas esferas da imprensa era, positivamente, um desconhecido.
A sugestão, todavia, penetrara fundo no meu espírito indo pôr na máxima tensão o vivíssimo desejo de sair as fronteiras pátrias, de correr mundo, de observar os múltiplos aspectos da civilização, entre outros povos, em diversas paragens da terra. E, sem quási dar por isso, impelido não sei por que íntima e irresistível força, achei-me daí a pouco no edifício do Século, a solicitar audiência a quem o dirigia e que, estando Silva Graça havia muito em Paris, era então Manuel Guimarães, a mais ágil intuição de jornalista que ainda conheci e a cuja memória não furto nunca homenagens. Ele recebe-me e audaciosamente eu exponho-lhe o projecto, aliás em bruto apenas, sem contornos práticos, tão recentemente se gerara em mim. Manuel Guimarães – estou ainda a vê-lo, porque cenas destas ficam-nos para sempre na rotina e na emoção - ouviu-me, mediu-me com o olhar arguto, e ao cabo de tão rápido mas, para ele, suficiente golpe de observação, disse-me apenas, numa pergunta que já significava meio-deferimento: «Quanto precisa para as despesas de viagem?». Este aspecto do caso não o considerara eu ainda; mas para não deitar, porventura, tudo a perder com hesitações, atirei à toa a cifra de três mil escudos, como quem já procedeu a seguros cálculos, quando, na verdade, não sabia se era pouco se muito.
— Felizes tempos esses, em que uma viagem aos Balcãs se fazia com três mil escudos! - exclamámos, interrompendo António Ferro.
— É verdade. E olhe que a fiz dentro da verba - assentiu e esclareceu o nosso entrevistado, reatando a interessante narrativa. - Manuel Guimarães nada objectou e o seu definitivo despacho exprimiu-mo ao chamar imediatamente o administrador do jornal, a fim de ficar regulado o pormenor financeiro. Depois, em concisa ordem de marcha, recomendou: «Faça os seus preparativos e parta o mais depressa possível. E até lá, absoluto sigilo!».
A tradicional «caixa» do meio jornalístico...
— Exactamente. Daí a instantes descia eu a escadaria do jornal com o cheque na algibeira e o espírito na exultação que é de supor, visto ir, de súbito, satisfazer a maior aspiração da minha existência nessa época: uma bela viagem, que muito excedia quer em amplitude, quer em encanto e variedade de lugares a percorrer, quer até em significado intelectual, a clássica viagenzita a Paris com que todos nós, rapazes do meu tempo, já nos contentaríamos. Quem mostrou moderado entusiasmo perante a extraordinária novidade, foi a minha família, porque partindo eu nessa ocasião — estava em vésperas de exame - perdia o ano e arriscava o curso.
O que veio a dar-se, supomos...
— De facto, não cheguei a formar-me em leis e esta viagem a Fiúme foi a causa disso; ela de decisivo modo me prendeu à carreira jornalística...
— ...onde veio a doutorar-se e que, no fundo, valendo tanto como a advocacia e a magistratura, tantos êxitos e tamanho prestígio lhe tem dado.
— Não tenho, na verdade, de que me arrepender. Mas, adiante. O itinerário foi por Paris, Milão e Trieste. Que impressão me fez a Cidade-Luz, a cidade tanto tempo apetecida!
— «Cidade de amor e de ternura, de flores e de lâmpadas eléctricas», chama-lhe V., num dos seus livros.
— Mas toda a viagem foi para mim fonte de deliciosas sensações. E quantos episódios curiosos a animaram, como aquele do meu ocasional encontro no comboio com um amável e cultíssimo cavalheiro com quem me embrenhei em longa conversação em língua francesa, para no fim, à despedida e quando declinávamos mutuamente as nossas identidades, descobrirmos que éramos compatriotas, pois o referido cavalheiro era simplesmente o general Freire de Andrade, que ia a caminho de Genebra como representante de Portugal na Sociedade das Nações.
— Esse episódio, salvo erro, vem no seu Gabriel d'Annunzio e Eu.
— Sim. Vejo que se lembra ainda desse meu distante livro, o qual nasceu desta viagem e a descreve com minúcia. Mas as impressões mais profundas que ela me deixou, recebi-as já próximo de Fiúme, já dentro da estranha cidade cuja conquista fez então agitar a opinião mundial. Em Trieste, se mais um segundo apenas eu me tivesse demorado perderia o derradeiro comboio para Fiúme, frustrando a reportagem de que recebera encargo. Calcule-se, pois, a satisfação sentida ao ver-me dentro dele, a rodar para o meu destino. Depois, a cena do desembarque na estação de Fiúme, em pleno dia mas numa desolação bem mais sensível a essa hora do que se fossem horas velhas da noite: o único viajante que descera do comboio era eu! E nas ruas por que ia passando, também nem viva alma. Parecia uma cidade deserta, uma cidade morta. Adiante de mim, com as malas, um porteur, em busca dum hipotético alojamento; e os passos dele, assim como os meus, ressoavam estranhamente naquela pávida solidão e naquele misterioso silêncio. Desde que o glorioso artista de La Nave tomara a cidade, toda a população se havia refugiado nas casas, receosa, expectante. Depois ainda, a minha detenção ao tentar acercar-me do palácio em que se instalara Gabriel d'Annunzio: os seus legionários haviam suspeitado em mim um conspirador, talvez. Momentos difíceis, esses, enquanto a situação se não esclareceu e me não soltaram; de sobra recompensados, porém, por outros de inefável júbilo ao achar-me finalmente na presença do poeta-guerreiro e ao escutar-lhe, para as transmitir aos leitores do jornal de que era enviado especial, as suas magníficas, as suas eloquentes declarações. Fitava-o, ouvia-lhe a voz sonora, e ainda me parecia mera ilusão a realidade feliz de estar junto daquele a quem a minha sensibilidade artística atribuía dons quais divinos.
— Todos nós, os da mesma geração, o adorávamos como a um ídolo, a esse Gabriel d'Annunzio actualmente pouco menos que esquecido. Na sua rota triunfal ainda não surdira Giovanni Papini, o cruel sagitário que o alvejou com epítetos como o de «cozinheiro de saborosas lascividades» e outros mais sangrentos ainda.
— Víamo-lo, convictamente, como «sommo Poeta suscitatore di sacri entusiasmi», na frase glorificadora dum dos heróis da conquista da Líbia. Depois dessa viagem a Fiúme - prossegue António Ferro, em remate da sua narrativa - quantas mais hei realizado, durante largo período como jornalista e, ultimamente, de há anos a esta parte, em diversas missões oficiais! Em nenhuma delas deixando de haurir prazer, é certo, mas já sem a frescura de emoções que, em plenitude, aquela me concedeu!
Verdadeiramente, só ao fazê-la experimentei o semi-perverso sentimento de desapego da terra onde nascera, derivado da empolgante curiosidade pelas alheias, que Paul Morand define assim «voyager, c'est être infidèle».
Nem sempre, verifico-o hoje. Começa por que, à medida que vamos percorrendo e observando mais mundo, vai-se avolumando em nós a convicção de que, sobretudo até aonde se estende a civilização moderna, os homens são, fundamentalmente, os mesmos, com superficiais variantes apenas. E saciada essa ardente e como que sensual curiosidade que nos lança para as primeiras viagens, instintivamente se regressa - mesmo quando no acto físico da partida. Regressa-se fielmente ao ambiente pátrio, aos costumes peculiares da nossa gente, às doces coisas familiares, e com a alma e a inteligência mais apuradas, pela comparação, para lhes descobrirmos melhor as virtudes e também para lhes apontarmos os defeitos, mas isto só por bem, por muito amor, a-fim-de que se corrijam deles e busquem a perfeição que lhes idealizamos. Há quem suponha que quem muito viaja se desnacionaliza. Não sucedeu isso comigo, felizmente.
— Nem com Ramalho, nem com o Eça, nem com Alberto de Oliveira, três sacerdotes de vero nacionalismo - não nos coibimos de comentar.
— Porque, afinal, dentro de nós estão raízes, tão fortes que se não podem arrancar nunca, a prender-nos à terra-mãe. Elas consentem apenas em distender-se, se nos afastamos. Enfim e voltando à minha primeira viagem: de tal modo ela roçou pelo maravilhoso, tão rica foi de ineditismo, que, às vezes, me parece ter sido apenas um sonho. Convencer-me-ia até que disso não passara se não possuísse bastantes provas tangíveis da sua realização, entre elas o retrato autografado de Gabriel d'Annunzio e por ele oferecido.
Fez-se um longo silêncio. A tarde cerrara-se de todo lá fora, sobre a cidade. Das janelas do gabinete de António Ferro tinham desaparecido os trechos panorâmicos que ainda uma hora antes, com o céu cheio de luz, elas emolduravam e em que sobressaiam com airosos vultos os morros da Graça e do Castelo, este ostentando, refeita, a sua medieval coroa de muralhas e cubelos. Esses painéis, haviam-nos subtraído decerto as sortílegas mãos do crepúsculo.
Também ali dentro, envolvendo-nos, viera a penumbra coalhar-se: ela quebrava as arestas dos móveis, desfazia os contornos das coisas, diluía-as, tornava-as por assim dizer imateriais. O bronze de Salazar, obra expressiva do cinzel de Francisco Franco, posto a um dos lados da sala em atitude tutelar, perdera as linhas graves do seu perfil; e descolorira-se a garrida tela de Mário Elói sobranceira ao sítio em que conversávamos.
Poder-se-ia encontrar ambiente mais propício à suave evocação, ao urdir da subtilíssima teia de recordações em cujo véu não se esquivam a deixar-se envolver os espíritos mais sensíveis à Beleza? E visto que a resposta ao inquérito já avonde no-la dera o cintilante cronista da Batalha das Flores, e ainda porque adivinhámos que lhe agradaria prolongar, a sós consigo próprio, as reminiscências que fôramos despertar e agitar em seu íntimo, erguemo-nos e retirámo-nos o mais discretamente possível, qual sombra deslizando na sombra. |
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03 — As vinte e cinco horas de António Ferro,
por Luís de Oliveira Guimarães.
Um dos melhores retratos que conheço de António Ferro pintou-o, com a graciosidade da sua pena, o autor do "Fumo do meu cigarro" [Augusto de Castro]. Não será um retrato com pose, por consequência, um retrato solene, oficial, de casaca e condecorações, mas, como instantâneo, temos de reconhecer que é perfeito. Na verdade, há homens gordos que são magros incorrigíveis por fora — que arrastam o peso interior de cem quilos invisíveis. Quer dizer: há falsos magros e falsos gordos. António Ferro pertence à segunda categoria. Vendo bem, não haverá por aí, de facto, muitos gordos capazes da leveza, da vivacidade, da frescura, da maleabilidade saltitante deste homem que se permite o luxo de ser gordo só para nos dar, em cada dia que passa, a surpresa e a elegância dum aerodinamismo que não tem rival entre nós. Augusto de Castro tem razão. Conheço António Ferro há uns bons vinte e quatro anos; tenho acompanhado a curva ascencional do seu espírito e do seu físico; sempre que o encontro constato que ele vai deixando, cada vez mais, de ser aquele António Ferro que eu estou a ver, com um bloco de audácias literárias debaixo do braço, no Chiado da nossa mocidade; mas, quaisquer que sejam as suas transformações, uma coisa se mantém nele, inacta digamos assim, à sua pessoa: o sentido, verdadeiramente dinâmico, de converter em realidade os seus próprios sonhos. Em regra, cada um de nós sonha enquanto dorme. António Ferro sonha mesmo acordado e – caso curioso – os seus sonhos constituem, desde logo, factos concretos. Ferro, sob o aspecto pachorrento dum sonhador literário, tem a visão exacta da existência. Eis uma das razões fundamentais dos seus êxitos na vida. Podíamos defini-lo como um poeta objectivo que não olha o mundo através de si, mas vê-se a si através do mundo. O papel branco em que escreve é o seu melhor espelho. A sua imagem reflete-se nas imagens que constantemente nos traça com as suas palavras. A sua obra literária como a sua obra política — que o escritor me perdoe esta expressão – constituem verdadeiros retratos da sua personalidade. Tudo isto eu pensava, recostado num do pequeno gabinete chinês que serve de ante-câmara ao gabinete, tão português, de António Ferro, no Secretariado da Propaganda, quando Jaime de Carvalho, risonho arauto, me comunicou que eu ia ser recebido, dentro de momentos. Levantei-me, aproximei-me da janela, e Lisboa – a Lisboa pitoresca da Sé, da Graça, de São Vicente, de São Jorge – surgiu, num relance, diante dos meus olhos, como uma formidável aguarela doirada de sol….
Estou agora no gabinete do Director do Secretariado, um gabinete amplo, calmo, em que a luz, coada pelas cortinas, empresta ao ambiente uma morna tranquilidade de . Sentado á sua mesa de trabalho, vestido de escuro, um pequeno distintivo na lapela, António Ferro, encastelado numa autêntica muralha de livros e de papéis, estendeu-me a ponta levadiça da sua mão — como ele diria nestes casos — e, ciente dos poderosos motivos que me levaram a procurá-lo, colocou-se familiarmente ao meu dispor.
— Lembra–se da sua «Teoria da Indiferença»? — inquiri para começar.
— Mais do que julga. Porquê?
— Há em certa página uma afirmação sua que eu recordo neste momento…
— Qual é?
— «Nunca me perguntem o que eu penso. O que eu penso é para mim; para os outros é, apenas, o que eu digo…» Este artigo ainda está em vigor?
António Ferro sorriu e, hábil diplomata, respondeu:
— Depende da interpretação, mais ou menos larga, que se lhe der. Creio que você….
Apressei-me a tranquilizar as suas naturais dúvidas – ele que sabe, como ninguém, até que ponto pode ir um entrevistador audacioso.
— Desta vez não venho perguntar o que pensa António Ferro, mas o que faz António Ferro….
E atirei logo para meter um «goal»:
— A que horas se levanta?
— Depende das horas a que me deito. Em regra, não me deito cedo, nem me levanto tarde. Uma vida, excessivamente absorvente, um dia de 25 horas, obriga-me a aproveitar todas as horas possíveis. O meu relógio é como um despertador permanente…
— Trabalha sempre?
— Das nove da manhã às duas da madrugada. Entre o Secretariado e a Emissora mon corps balance… Nos intervalos creio que almoço e janto…
— Não costuma ir ao teatro?
— Mas isto não é uma entrevista: é uma caça às confidências… Não, não vou muito ao teatro… Um pouco por falta de tempo, um pouco porque a circunstância de ter sido, largo período, crítico teatral obrigou-me a ver peças a mais … Entretanto gosto de teatro e julgo-o um elemento essencial de cultura…
E logo me segredou:
— Vou mais ao cinema. Apenas por comodidade, confesso. E deixe-me dizer-lhe que raramente me arrependo, porque, de certo modo, é esta ainda a melhor forma de espreitar o mundo pelo buraco da fechadura…
Mudei de assunto:
— Porque deixou de fazer literatura?
Um sorriso.
— Perdão…Eu não deixei de fazer literatura. Simplesmente a minha literatura faço-a agora com a tinta da acção. De resto, procuro pôr sempre uma certa literatura, digamos poesia, em todas os meus actos… Note: esta espécie de poesia, literatura digamos, que me não abandona nunca, constitui mesmo a minha desforra contra a inevitável burocracia da minha vida oficial… Sem esse condimento poético, nada consegue convencer-nos, nada consegue insinuar-se em nós… Muitas coisas em Portugal resultam frias, monótonas, duras, porque os seus empreendedores esquecem, ignoram ou desdenham esse mínimo de poesia…
O telefone retiniu. Acto contínuo, Jaime de Carvalho entrou, anunciando uma visita com audiência marcada. Despedi-me de António Ferro, deixando-o entregue à sua batalha diária, essa batalha que ele, autêntico amador de fenómenos, consegue transformar sempre numa batalha de flores…
Em "Dize tu, direi eu", p. 295, 1942. |
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04 — António Ferro (autor),
por António Ferro (prefaciador).
António Ferro, chemineau de si próprio, oleiro de frases, exigiu-me que lhe prefaciasse a segunda edição da sua preocupada Teoria da Indiferença. Aborrecido, importunado na quietação búdica do meu espírito, à viva força pretendi esquivar-me, indicando-lhe outros nomes, outras firmas, trombetas que mais alto berrassem o seu nome. Tudo inútil, porém. Às várias plataformas que a minha indolência lhe propôs, António Ferro respondeu-me, com azedume, que só eu, António Ferro, o saberia compreender. Os amigos são implacavelmente delicados, em virtude do celebrado contrato social. Só os inimigos nos fazem justiça. Em mim, tinha ele observado um juiz severo para todos os seus actos, contrariando-o em tudo, analisando-o, discutindo-o, autopsiando-lhe a alma, por vício, por sistema. Amolentado pelos argumentos, concordando, na verdade, que o nosso Eu foi sempre o inimigo mais interessado em vencer-nos, espojei-me nos meus sentidos-esteiras atravessadas no lajedo musical da minha alma – Patio de las Muñecas – e, envergado o quimono branco da sinceridade, fumei o ópio das frases que aí vão… António Ferro é um funâmbulo de circos e de feiras. Mergulhando, no baú mágico do seu tinteiro, esse outro dedo que ele tem na sua caneta destra, como um escamoteador, descobre, extrai, arranca bandeiras, fitas, lenços de cores, labaredas, pombos, mulheres… A sua arte é uma arte de encruzilhadas, de encontros imprevistos, de assaltos à inteligência, de tiros à queima-roupa e de punhais sangrentos. A alma de António Ferro é um cartaz espantando a António Ferro 46 multidão. A sua prosa é um automóvel de carrosserie vermelha, que passa a buzinar, atropelando tudo, senhores de calva e pança, míopes, óculos, lunetas, monóculos, jornalistas de artigos de fundo, mais propriamente, jornaleiros de fundilhos. O Carnaval é a semana santa do artista, semana sagrada onde as imagens desfilam, em procissão, no andor das suas frases… António Ferro é um trapeiro de cores. Ele anda pelo chiqueiro da vida, curvado, envelhecido, de sentidos esfarrapados, apanhando no arpão da sua pena – rodilhas de céu, trapos de arco-íris, gomos de luz, pedaços de vitral, cascas de frutos… António Ferro tem o parti-pris da cor, a obsessão, a tara estética e divina do protagonista do Chef-d’oeuvre inconnu desse velho Balzac – vient-de-paraître no decorrer dos séculos. António Ferro triunfará na Hora-Águia em que sentir marulhar na sua arte o ritmo oceânico das cores – cascatas de vermelho, ondulação de azuis, calmarias de cinzento, ciciar de lilases. Ele é um alcoólico, um bêbedo dos sentidos. A sua alma anda aos tombos na sua sensibilidade. Ele sobrepõe as suas múltiplas sensações como cartas de jogar, erguendo-se em castelo, nas mãos de certo infante… Epicuro, no sonambulismo das idades, ensaiou a maquette do espírito de António Ferro nesta frase legenda: «Todos os meus pensamentos vêm dos meus sentidos.» Como alguém afirmou, há tempos, o autor da Teoria da Indiferença é um clown, um palhaço lantejoulado, enfarinhado de luar. As coisas, em seus dedos, são marionnettes vistosas, marionnettes que ele veste como entende, que ele traja de seda, de veludo, de cetim ou de chita… O corpo humano é, para António Ferro, uma barraca de feira, onde os cabelos, os olhos, o nariz, a boca, os seios, se debruçam como fantoches… Irmanado com Anatole France no Petit Pierre, os dedos das mãos são, para ele, uma troupe de cómicos, de boémios, de saltimbancos. O meu prefaciado é também um alquimista de sínteses. Sublinha com um traço as suas emoções, e acha-lhes a soma, a seguir… A arte é uma sugestão, a campainha eléctrica da Vida. Por fora das gavetas indica-se o que está dentro. Quem tiver curiosidade, abra as gavetas e escolha o que entender. É ainda Anatole – esse gato borralheiro da literatura francesa – quem ronroneja no Jardin d’Epicure esta verdade profunda – tão bela como qualquer mentira: «Qu’est-ce qu’un livre? Une suite de petits signes. Rien de plus. C’est au lecteur à tirer lui- -même les formes, les couleurs et les sentiments aux quels ces signes correspondent. II dépendra de lui que ce livre soit terne ou brillant, ardent ou glacé.» António Ferro é um escritor objectivo, apenas objectivo – Ele não olha a Vida através de Si, mas vê-se a Si através da Vida. O papel branco em que escreve é o seu espelho. A sua imagem reflecte-se nas suas imagens. Ele não tem a premeditação da sua arte. As suas palavras florescem, na sua pena, como cravos vermelhos. Jean Cocteau, o dadaísta, forneceu-lhe o ex-libris da sua arte nesta frase – mil frases: «L’idée naît de la phrase comme le rêve dévie selon les poses d’un dormeur qui se retourne.» António Ferro é, finalmente, um impressionista, talvez o único impressionista conhecido em literatura. Como Manet, Sisley, Renoir, ele proclamou na sua arte a realeza do Sol. A luz é o sangue das coisas. A arte é uma iluminura. A própria sombra é recortada na claridade. O Sol é o grande mentiroso, o resplendor da paisagem, o mais belo fotógrafo. O nosso melhor retrato é ele quem nos tira. No seu Elogio das Horas, António Ferro fez com palavras o que Claude Monet fez com tintas nas suas variações sobre os passos do Sol. Impressionista pelo estudo da luz, ele é também um impressionista na escolha livre dos motivos. Para a sua visão não há assuntos bons nem assuntos maus, há cores vivas ou cores mortas. A cor é o seu princípio, meio e fim. Tudo, para ele, se distingue por nuances. A cor é a linguagem de Deus, o idioma dos olhos. António Ferro é ainda um impressionista na distribuição dos tons. Como Renoir ele pinta em touches sucessivas: palavras estralejantes, cinzentas, agudas, desmaiadas… A sua prosa é um poente esbraseado.
António Ferro é um fumador de paradoxos. A Teoria da Indiferença é, portanto, um livro de mortalhas, um livro de mortalhas Zig-Zag. Tem sido este livro bastante comentado, fartamente autopsiado nas mesas dos cafés — mesas de anatomia... O primeiro ataque que se lhe faz, maneirinho e fútil, é a insinuação de que o autor da Teoria da Indiferença não é, de modo algum, um indiferente. Estamos de acordo. Não é, nem o quer ser.
As teorias não são factos, são aspirações. A sua teoria é um programa que pode ser alterado por qualquer motivo imprevisto. As mulheres, por exemplo, são sempre motivos imprevistos da Indiferença. Os apóstolos são os escravos das ideias, não são as próprias ideias. Quem prega uma ideia não deixa de a praticar inevitavelmente. Ele bem o sabe. António Ferro não se preocupa, porém, com as suas incoerências: tem por elas a máxima indiferença.
A outra acusação, mais viva e impertinente, é aquela que se refere à fragilidade do livro. livro de boutades, de blagues, de frivolidades sibilinas. Isto já eu sabia, aquilo também eu dizia... Não duvido que o soubessem, nego que o tivessem dito... Raku da sua arte, António Ferro poderia oferecer, afoitamente, uma quantia avultada a quem conseguisse desenterrar do pó das bibliotecas um livro igual ao seu. Já Nietzsche, esse Diógenes das Ideias raras, filosofava no Humano, demasiado humano: «O cérebro mais subtil não é capaz de apreciar a arte de subtilizar um paradoxo, se não tiver sido educado para isso, ou se o não tiver já tentado. Supõe, ingenuamente, que a agudeza de espírito necessária par sintetizar é mais fácil do que na verdade é, e passam-lhe despercebidos os atractivos e os sentidos ocultos das máximas e pensamentos.»
Efectivamente, a humanidade escusa de pensar mais. O que é essencial é catalogar as ideias, arrumá-las na alma, como numa estante. O trabalho mental está feito. Resta pôr etiquetas ao pensamento humano. A máxima originalidade está em reunir, numa fórmula, o maior número de verdades eternas. è esta a preocupação dominante do autor deste livro. A arte de António Ferro será o ovo de Colombo; António Ferro, portanto, que a descobriu, é, logicamente, o Cristóvão Colombo da sua arte. Em «Prefácio» à segunda edição de "Teoria da Indiferença", 1921.
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05 — Prémio António Ferro,
instituído por Eduardo Brasão em 1957
Evocando e prestando homenagem ao primeiro director do SPN/SNI, António Ferro: Poeta e jornalista, critico e ensaísta, conferencista e dramaturgo, grande impulsionador e defensor em Portugal da arte moderna em todos os seus aspectos, propagandista entusiasta de todos os valores nacionais, fomentador da «Politica do Espírito», de que foi o porta-estandarte no nosso pais e no estrangeiro, como primeiro director do Secretariado da Propaganda Nacional (1933-1944) e primeiro Secretário Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (1944-1950), a ele se deve, a par de tantas outras admiráveis iniciativas, a criação da quase totalidade dos prémios literários e artísticos evocados nesta exposição. Em 1957, procurando perpetuar a memória da acção exercida por António Ferro no sentido de tornar Portugal conhecido do estrangeiro através da imprensa que ele soube honrar e acarinhar como ninguém, Eduardo Brasão – 4.º director do SNI – instituiu o «Prémio António Ferro».
CARACTERISTÍCAS
O valor do prémio era de 15.000$00 e o autor era convidado a vir recebê-lo a Portugal com uma estadia de 10 dias oferecida pelo Secretariado Nacional de Informação.
A candidatura ao Prémio e o envio de exemplares podia fazer-se directamente para o Secretariado Nacional da Informação, Palácio Foz - Restauradores - Lisboa - Portugal, ou através da Embaixada ou Legação de Portugal, no país respectivo.
O prémio, bienal e concedido em anos alternados, com o do Prémio Camões», foi atribuído pela primeira vez, em 1958, abrangendo artigos publicados desde 1 de Janeiro de 1956 até 31 de Dezembro de 1957.
REGULAMENTO
I
O «Prémio António Ferro» destina-se a galardoar os jornalistas estrangeiros que na imprensa periódica publicarem artigos sobre Portugal e a vida portuguesa.
O prémio é bienal e será atribuído ao artigo que o júri escolher de entre os publicados nos dois anos anteriores, em publicações periódicas estrangeiras sobre Portugal, em qualquer das línguas, portuguesa, francesa, inglesa, espanhola, alemã ou italiana.
II
O montante do prémio é de 15.000$00. O jornalista a quem for atribuído será convidado a visitar Portugal, a fim de recebê-lo.
III
Serão admitidos ao concurso os artigos publicados em primeira edição, no período de dois anos que vai de 1 de Janeiro de um ano a 31 de Dezembro do ano seguinte.
IV
A candidatura poderá ser apresentada por simples carta pelos autores dos artigos ou proposta por terceiros com anuência dos autores, e será acompanhada de seis exemplares do jornal ou revista em que o artigo haja sido publicado, devendo dar entrada no Secretariado Nacional da Informação até ao dia 1 de Fevereiro do ano seguinte àquele em que haja expirado o biénio a que o prémio se refira.
V
O prémio será conferido em Lisboa, até ao fim de Maio do ano em que se fizer o apuramento, por um júri constituído por quatro membros escolhidos entre jornalistas portugueses de reconhecido mérito e presidido pelo Secretário Nacional da Informação que só votará em caso de empate.
VI
O Júri procederá de acordo com o Concurso na sua letra e no seu espírito, podendo deixar de atribuir o prémio se entender que nenhum dos artigos o merece.
PRÉMIOS ATRIBUÍDOS ATÉ 1963 (OU 1965)
1957
Prémio entregue a Leo Magnino no dia 26 de Outubro de 1958 pela sua obra «Il Contributo del Portogallo alla civiltá occidentale» in «Revista Latina».
1959
Prémio entregue a Ramón Ledesma Miranda pelos artigos que publicou na Imprensa espanhola.
1961
Prémio entregue a Roland Faure pelos artigos publicados no Jornal «L’Aurore».
1963
Prémio entregue a Hugh Kay pelos artigos publicados nos jornais «Catholic Herald» e o «Globo»
1963 (ou 1965?)
Prémio entregue a Francisco Alves Pinheiro pelos artigos publicados nos Jornais »Catholic Herald» [talvez haja uma «gralha» na publicação]
Fontes consultadas
- «Diário de Coimbra», 10-12-1956. [FAQ/02/022/0205]
- "32 Anos de "Política do Espírito 1934-1966. Exposição dos Prémios do SNI", 1966
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06 — Presença humana de António Ferro,
despedida de Augusto d'Esaguy
Nós fomos, durante tantos anos, dois amigos tão juntos, que nos encontrávamos todas as manhãs, ali, no velho Café Martinho e, mais tarde, nas noites do «Vigia», Avenida da Liberdade, quase ao dobrar da Rua das Pretas, tertúlia de moços avançados que, então, desejavam a «sociedade nacional de belas-artes» transformada numa «Sociedade Nacional de Belas-Artes».
Publicámos dois manifestos: «Vigia» e «Nós», o primeiro meu, o segundo de António Ferro.
Ali juntámos à volta da mesma mesa Ramón Gomez de la Serna, Guilhermo de Torre e Picabia, vanguardistas na novela, na poesia e na pintura. Ferro aparecia todas as noites e quando um de nós publicava, à sua custa, um folheto de poucas páginas, logo ali o distribuíamos gratuitamente a amigos e a desconhecidos,
Só mais tarde, volvidos anos, surgiu a «Contemporânea» e o Teatro Novo, nos baixos do Tivoli, com «premières» agitadas, mistura de marujos na plateia e estreia de Francis, o nosso primeiro bailarino. Tudo tão longe já! No «Ventanal» de Ramón Gomez de la Serna, no Estoril, com uma «montra» bem rasgada sobre o Atlântico, nos encontrámos noites sem conta e fim. De volta visitávamos o Oceano, arremetido e audaz em dias de invernia. Na «Quinta de Palmyra», novela de Ramón, vimos o Sol morrer em poentes trágicos de angústia e de beleza.
Era o mais viajado de todos nós. Vivera em Angola e passara semanas em Paris. Fora amigo de Cocteau, cuja presença se encontra no fundo de toda a sua obra literária.
Possuía as primeiras obras de Cocteau, com dedicatórias, e deslumbrava-nos com a descoberta de Henri Duvernois, contista da época, morto cedo num inesperado encontro com a vida.
Armando Basto e Alberto Cardoso, entre outros, eram nossos amigos de quase todos os dias, quando se encontravam entre nós gozando férias de Paris ou a acumular saudades das noites de Montmartre, dos bairros longes ou das casas velhas de Malakoff.
Não é o descanso que importa ou conta na vida. Mais tarde, António Ferro sonhou um Secretariado da Propaganda Nacional e instalou-o em S. Pedro de Alcântara, numa das colinas da cidade. Do seu gabinete de trabalho, aberto a todos os escritores e artistas, sobrado velho do espírito, Lisboa dir-se-ia pintada num painel de sonho por Carlos Botelho, o «Botelho do Sr. Parece-mal», que António Ferro, alfacinha do Largo do Intendente, (tal como Ricardo Espírito Santo, meu velho camarada de estudo), nunca mais abandonou.
No Intendente, com bica e fonte a correr sempre, ouvi ler os seus primeiros ensaios, os primeiros e escandalosos paradoxos, numa saleta com janela para a rua, distante antecâmara do seu gabinete de secretário nacional.
Durante algum tempo, sem descortinarmos bem a razão — a vida — duas profissões opostas separaram-nos. A distância, porém, nunca quebrou a nossa amizade de sempre, do tempo de Sidónio e de Filomeno da Camara ou das duas Faculdades que o mesmo destino juntou, em 1911, no Campo de Santana.
Ferro foi sempre igual a si próprio. Nunca se desmentiu. Na velha «Ilustração Portuguesa», num instante de preocupação financeira, pagou-me artigos que nunca escrevi ou que lhe entreguei mais tarde e não me recordo de ter visto publicados.
António Ferro era assim: certo e rente, sem palavras, nas horas incertas; estranho quando sabia os amigos seguros ou em posição firme.
É bem possível que fosse este o traço caracterológico que nos uniu vida fora até ao momento trágico da sua morte inesperada.
Foi um impenitente coleccionador de sonhos. Por tal razão viveu sempre numa bela viagem, mesmo quando se encontrava, por dever de ofício, ancorado no seu gabinete.
Pode dizer-se afoitamente que o sentido exacto da moderna propaganda nasceu, em Portugal, com António Ferro: a propaganda da terra e da grei, de todos os valores aparentes ou ocultos da nossa gente.
Tinha o sentido da existência comum, e sempre que a descobria valorizava-a para a eternidade. António Ferro combateu sem tréguas a mediania, a oleografia, o cromo, o mau gosto, o bonito com torcidos e sem estilo, a sala-de-espera da pensão barata e inóspita.
Deu sentido e hierarquia à arte popular desarrumada e, no aspecto turístico, lançou Portugal no estrangeiro com a elegância e o tacto dum Jean Patou ou de um Christian Dior.
Levou Portugal, que tinha sempre no seu coração lisboeta, ao estrangeiro, vestido com decência e elegância ou, quando o não podia fazer, com trajos populares estilizados.
A obra de António Ferro no Secretariado Nacional da Informação, a valorização dos artistas portugueses, a sua política do espírito, está ainda por historiar com dignidade.
As campanhas de ódio ou de silêncio não conseguiram abalar a fé ou transviar a visão que sempre o orientou. Foi discutido e combatido em todos os sectores da sua actividade, ferido na sensibilidade de artista, magoado na sua alma lusíada.
A colecção de discursos que proferiu durante os anos em que orientou e dirigiu o Secretariado Nacional da Informação, discursos que, num gesto peculiar de elegância, começou a editar quando já estava de abalada, em preparativos para a longa estadia na Suíça, ficou truncada.
Nesses discursos se encontra documentada, em frases difíceis de esquecer, parte da sua vasta obra, a grande obra que realizou a bem de Portugal e dos Portugueses. Não seria, agora, a ocasião propícia de completar a série interrompida, património de todos e não privilégio de alguns?
António Ferro parou nos que o amaram em todas as situações, nas longas horas de desânimo e nos breves instantes de triunfo, de certeza e exaltação.
Recordo-o no meu gabinete de trabalho onde tantas vezes nos reuníamos por acaso ou por necessidade imperiosa de trocarmos sonhos, planos, visões, paisagens interiores, minutos vividos, recordações que nos enlaçavam.
Impressionou-me profundamente o seu aspecto quando o vi partir pela última vez para Roma. Os fatos já não lhe pertenciam. A doença e a nostalgia tinham minado aquele arcaboiço de aparência forte. Não sei porquê, passei a adivinhá-lo depois em rumo de nostalgia.
Suíça, Roma, Paris... António Ferro, porém, ficou sempre secretário nacional da Informação, sentinela vigilante, embaixador extraordinário de Portugal junto de todos os escritores e jornalistas da Europa, que conhecia e estimava desde sempre, delegado permanente de Portugal nos cantos solidários dos «cafés» de Paris, nas ruas sem destino, nos salões literários, nas plateias dos teatros e cinemas, na ópera ou na pequena «boîte», na casa da Calçada dos Caetanos ou no Buçaco em horas tristes ou de repouso.
Tal como Jean Cocteau, académico pela graça do destino e doutor H. C. pela Universidade de Oxford, nunca concebi o António Ferro do «Orfeu», da «Contemporânea» e do «Vigia», académico com número ou sem número, com fardão azul ou verde bordado a oiro sem quilate contrastado...
Partiu em viagem António Ferro, levando como única bagagem vida interior, sonhos realizados ou mutilados.
Era meio-dia, sol a pino. Felizmente não chovia. Aos ombros dos amigos, dos colaboradores que ele teimosamente valorizou, lá foi a caminho do mundo imenso, ungido por aquela perfeição que só raros decifram.
Ficou, porém, presente para sempre nas páginas de beleza que escreveu, nas Pousadas que fez construir, com amor e carinho, em todo o País, na terra que valorizou, nos pequeninos motivos de arte popular a que deu alma, num Museu de Arte do Povo, na beleza de um cartaz, no colorido da capa de um livro, na história simples de contar de uma ingénua lenda popular, no ritmo e na harmonia de um bailado do «Verde-gaio», no sonho do húmus e da boa e simples gente de Portugal, na volta cantante de um rancho popular, na miniatura de um barco, na figurinha de um presépio de barro, no pórtico de uma exposição, no encontro de dois sonhos que se unem e entrelaçam para sempre.
Foi simples, humano, efusivo, trasbordante de sensibilidade, o jornalista, escritor e diplomata, António Ferro, que a morte levou em seus braços.
Em «Diário de Lisboa», 1956.11.22. [FAQ-02-011-0072]
Fotografias, acervo da Fundação António Quadros:
Sala de Lisboa, Calçada dos Caetanos, 1923 [FAQ/06/1003];
Escritório de Lisboa, Calçada dos Caetanos, 1923 [FAQ/06/1004];
Palácio Foz, [s.d.] [FAQ/06/3993];
Escritório no Palácio Foz [FAQ/06/3994];
Escritório na Legação de Portugal, Berna, 1953 [FAQ/06/1592].
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07 — Notícias várias,
da Fundação António Quadros e de entidades externas, parceiras da Fundação.
A Paixão de Fernando P., romance póstumo de António Quadros
Segunda edição revista e complementada com catorze ensaios sobre a obra por Anabela Almeida, Fabrizio Boscaglia, Joaquim Domingues, José António Barreiros, José Carlos Seabra Pereira, Lourenço de Morais, Manuel Cândido Pimentel, Manuel Dugos Pimentel, Manuela Dâmaso, Paula Mendes Coelho, Paulo Samuel, Pedro Martins, Ricardo Belo de Morais e Risoleta Pinto Pedro.
A cerimónia de apresentação, por Paula Henriques, aconteceu no passado dia 13 de Julho. Adquira o seu exemplar na livraria da Fundação António Quadros, geral.faq@gmail.com
PVP: 20€
António Quadros nos 100 anos do seu nascimento
Actas do Colóquio com o mesmo nome,
obra apresentada no passado dia 13 de Julho.
Adquira o seu exemplar na livraria da Fundação António Quadros:
geral.faq@gmail.com
PVP: 10€
«António Quadros e a Espiral, 60 anos depois»
Exposição patente
na Fundação António Quadros, em Rio Maior,
até ao dia 26 de Agosto de 2024.
Horário de Agosto:
Dias úteis, 9h-17h
Sábados, domingos e feriados: está encerrada
Entrada livre
"A Filosofia da Saudade" - reedição da obra de António Braz Teixeira
Obra reeditada em versão revista e aumentada, por MIL - Movimento Internacional Lusófono e DG Edições, numa merecida homenagem ao seu autor que em Julho passado completou 88 anos.
O autor dedicou este livro "À memória saudosa de Afonso Botelho, António Dias de Magalhães, António Quadros, David Mourão-Ferreira, José Augusto Seabra, Lima de Freitas, Miguel Reale, Natália Correia, Natércia Freire, Vamireh Chacon".
Associação Agostinho da Silva, por Maurícia Teles
No passado dia 19 de Maio de 2024, 30 anos depois da partida de Agostinho da Silva, a Associação Agostinho da Silva reavivou o significado da tradição portuguesa do Culto do Espírito transmitida pelo Pensamento de Agostinho da Silva e de António Quadros.
Saudosamente lembrámos Romana Valente Pinho, na sua obra Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva, em relação com Leonardo Coimbra. Aqui citamos um breve excerto: “a Graça surge no pensamento de Agostinho da Silva como causa primeira e última do ser do Homem. Primária e essencialmente o Homem é Graça, contudo, o seu percurso mundano fá-lo, na maioria das vezes, afastar-se da sua essência, da sua originalidade, da sua infância. Para o autor é a Criança que mais e melhor é Graça, na medida em que ainda a não desvirtuou e escondeu. Nessa perspectiva, apela Agostinho, no seio daquilo a que podemos chamar de antropologia agostiniana, para um regresso à infância, para a imersão do Homem no seu interior e anterior. Se a Criança é a Graça excelsa e plena, então, é a ela que devemos voltar, coroando-a Imperatriz e Rainha do nosso ser mais íntimo e das nossas vontades e decisões.” (Romana Valente Pinho, Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva, INCM, Lisboa, 2006, p.134).
Música de guia e companhia:
Talvez de toda a nossa língua seja
o mais belo este dito: “de mãos dadas”:
pois então, de mãos dadas, por queridas,
se ordenadas, cumpridas.
Agostinho, Uma folhinha de quando em quando – Julho 91
(excerto da carta enviada aos amigos e amigas)
Newsletter do «Projecto António Telmo. Vida e Obra»:
Parabéns a António Cândido Franco, membro do Conselho Consultivo da Fundação António Quadros, meu amigo e de António Quadros.
Mafalda Ferro.
Colóquios do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira:
— IX Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade/ II Encontro de Filosofia e Cultura Luso-Galaica 23 de Setembro (Lisboa); 24 de Setembro (Porto); 25 de Setembro (Vigo); 26 de Setembro (Santiago de Compostela).
Para mais informações: https://iflb.webnode.page/setembro-2024-ix-coloquio-luso-galaico-ii-i-encontro-de-filosofia-e-cultura-luso-galaica/
— VIII Colóquio do Atlântico: “Teófilo Braga hoje: no centenário da sua morte”, 30-31 de Outubro, Ponta Delgada (Universidade dos Açores); 4-5 de Novembro, Lisboa (Biblioteca Nacional de Portugal).
Para mais informações: https://iflb.webnode.page/outubro-novembro-2024-viii-coloquio-do-atlantico/
— XIV Colóquio Tobias Barreto: “O diálogo com Kant no pensamento luso-brasileiro”. Biblioteca Nacional de Portugal (5-6 de Novembro) | Faculdade de Letras da Universidade do Porto (7-8 de Novembro).
Para mais informações: https://iflb.webnode.page/novembro-2024-xiv-coloquio-tobias-barreto-de-filosofia-luso-brasileira/ |
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08 — Livraria António Quadros.
Obra em Promoção até 14 de Setembro de 2024.
Coordenação: Mafalda Ferro.
Título: António Ferro 120 anos. Actas.
Descrição: Registo das acções realizadas em homenagem a António Ferro durante o ano de 2015, 120 anos depois do seu nascimento.
Edição — Lisboa: Fundação António Quadros Edições | Texto Editores, 2016.
Apoio Institucional: Câmara Municipal de Rio Maior.
PVP (Promoção): 8€
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