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Newsletter Nº 214 / 14 de Outubro de 2024
Direcção Mafalda Ferro Edição Fundação António Quadros

ÍNDICE


01 —
Fernanda de Castro, de alma em flor, liberta num golpe de asa, há trinta anos, por Mafalda Ferro.

02 — Lembrando Natércia Freire (1919-2004), vinte anos depois da sua morte, por Mafalda Ferro.

03 — Fernanda de Castro e a música enquanto elemento pedagógico, social e cultural, por Mafalda Ferro. [Inclui link para «Das Palavras e da Música: Intersecções na Obra de Fernanda de Castro», de Helena Marinho]

04 — Evocar o Secretariado de Propaganda Nacional 91 anos após a sua constituição, por Cândida Cadavez.

05 — Manuel Tânger Corrêa e a sua sempre presente paixão pelo teatro, por Mafalda Ferro.

06 — Entidades parceiras e outras. Divulgação.

07 — Publicações recentes. Divulgação.

08 — Livraria António Quadros: Obra em promoção: "África Raiz", de Fernanda de Castro.

 

EDITORIAL, 
por Mafalda Ferro.


Dedicamos a presente newsletter a Fernanda de Castro no início do trimestre em que, muito especialmente, será lembrada, 30 anos depois da sua morte e 124 anos depois do seu nascimento. Fernanda de Castro deixou saudades e memórias, deixou a obra... e, através dela, a sua alma.

Destacamos, também, a grande poetisa, jornalista, contista Natércia Freire que nos deixou há 20 anos e, ainda, o filologista, diplomata, homem da rádio, da televisão e do teatro, Manuel Tânger Corrêa, com especial enfoque na sua paixão pelo teatro.

A não perder, ainda, o excelente artigo de Cândida Cadavez sobre a constituição do Secretariado de Propaganda Nacional (S. P. N.) em Outubro de 1933.


Prémio António Quadros 2024 «História Contemporânea»:


Maria João Castro será este ano premiada pela sua obra "Viagem à década de 1920. O diáfano brilho da extravagância", publicada em 2023.

O Prémio será entregue em Rio Maior no dia 29 de Outubro de 2024, às 15h. Contamos consigo.

JÚRI: 
António Roquette Ferro, Francisco Gautier, Madalena Ferreira Jordão, Mafalda Ferro.

MARIA JOÃO CASTRO
 integra o Centro de Humanidades (CHAM) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa onde é, presentemente,  investigadora contratada com o projecto TravelconT. Cruzamentos da Viagem Contemporânea no Turismo Pós-Colonial.
Os seus domínios de especialização centram-se dentro da História da Cultura Contemporânea no que concerne às Circulações Globais (Viagem e Turismo) tendo vindo a publicar obras que convocam estes mesmos âmbitos tais como "Viagem a Zanzibar 1906" (2024), "Pintura Colonial Contemporânea" (2021) ou "Império e Turismo" (2019) e ainda outras de literatura de viagem.
Coordenou com Margarida Acciaiuoli "Arte & Discursos dos factos aos relatos construídos por estrangeiros acerca de Portugal" (2014) e são também de sua autoria, entre muitas outras publicações, "Dança e Poder. Diálogos e Confrontos no século XX" (2015) e "Os Ballets Russes em Lisboa", obra publicada na colecção «O Essencial Sobre», n.º 133 (2017).
A historiadora, por esta mesma obra, foi em 2023 galardoada pela Academia Portuguesa da História com o Prémio «Dr. João Lobo História».

Nota: Estas e outras informações estão e vão sendo actualizadas no Sítio da Fundação António Quadros.

 

01 Fernanda de Castro, de alma em flor, liberta num golpe de asa, há trinta anos, 
por Mafalda Ferro.


Mergulhando na sua obra literária, poética ou em prosa, para crianças ou adultos, o leitor depara-se, em cada uma das narrativas, com inúmeros e visíveis sinais da sua proximidade e encanto pela natureza. Quer como pano de fundo ou como protagonista, a natureza feita de sons, silêncios, imagens e aromas marca presença e transporta-nos, página a página para cenários virtuais como se aí existíssemos.


Lamentavelmente, poucos tiveram acesso ao seu livro "A Vida Maravilhosa das Plantas" (Tipografia Peres, 1964), edição única, da autora, capa e ilustrações de Inês Guerreiro, já que se imprimiu apenas um reduzido número de exemplares e que não foi reeditado. Nesta obra, mais do que em qualquer outra, reconhecemos não só a sua intensa paixão, como o seu profundo conhecimento e entendimento do reino vegetal:

 

«Este pequeno livro não é, nem pretende ser um tratado de Botânica, mesmo rudimentar, alguns conhecimentos básicos parecem necessários para que o Leitor possa compreender e acompanhar, passo a passo, a vida secreta e maravilhosa das plantas, os mil estratagemas de que se servem para atingir os seus fins, ou seja, a conservação da espécie, e ainda as particularidades de cada Família, gostos, hábitos, ia a dizer caprichos e manhas, tão evidentes, ou quase, no Reino Vegetal como no Reino Animal.»                                                                                                    


Neste livro, a autora imprimiu características humanas às plantas sendo notória a forma como, tão profundamente, se identifica com cada uma delas, sentindo por elas tal amor que, através das suas palavras, fonte de saber também sobre si própria, encontramos a sua essência em toda a sua plenitude.

 

«Não poderei dizer quantas vezes abracei e beijei os troncos das árvores. As flores, não tinha a mais pequena dúvida, desabrochavam para mim, e se o espinho de uma rosa me picava, achava sinceramente que a culpa não era do espinho, que a culpa era minha por ter colhido a rosa.»

"Ao Fim da Memória", 1987.

Ainda menina, fora iniciada por uma tia no amor e no conhecimento das plantas, como descrito no seu romance autobiográfico (com um toque de ficção) "Maria da Lua" (edição da autora, 1945):

 

«Maria da Lua aproximava-se a correr, de regador na mão, e a tia mostrava-lhe a primeira violeta, o primeiro junquilho, o primeiro cacho de lilases. Quem a visse nesses momentos dificilmente a reconheceria. A voz e o olhar humanizavam-se, as mãos tornavam-se brandas, leves, femininas. Mostrava a Maria da Lua o último lírio da estação e dizia coisas como esta: «Olha, Maria da Lua... parece um pássaro que quer voar e não pode...»

Sabia o nome de todas as flores, de todas as plantas, e dava lições de botânica à sobrinha:

 

Que flores são estas, Maria da Lua?

— São açucenas.

— E estas?

— São cilindras.

— E estas?... estas?... estas?...

— Gerbérias... zínias... cinerárias...

— Agora, fecha os olhos.

 

Passava as mãos pelos arbustos floridos, pelas ervas aromáticas e perguntava a Maria da Lua:

 

— A que cheiram as minhas mãos?

— Cheiram a lúcia-lima.

— E agora?

— Cheiram a madressilva... a alecrim do norte... a baunilha...

 

Às vezes, Maria da Lua hesitava, não tinha a certeza. Julgando apanhá-la em falso, a tia Emiliana insistia:

 

Então, dize lá... a que cheiram as minhas mãos?

Cheiram a primavera, a jardim!... respondia Maria da Lua com um olhar cheio de malícia.

 

A tia Emiliana sorria, passava-lhe a mão pela cara e suspirava:

 

Tola não és... Se fosses menos selvagem, menos arisca!...


No quarto que foi seu durante mais de setenta anos, aquele em que o seu corpo viveria encerrado durante os últimos doze anos, acamada, plantou um jardim, mas, já antes, muito antes, escrevera como se adivinhasse então até que ponto viria a partilhar o destino das suas irmãs plantas:

 

«O drama da imobilidade: Quando após um dia de trabalho exaustivo regressamos a casa saturados de barulho e de movimento, se por acaso pousamos os olhos numa árvore, numa flor, num canteiro de relva, invade-nos uma sensação de paz, como se um véu de silêncio envolvesse e amaciasse os gestos e os sons. E contudo essa paz é ilusória, esse mundo vegetal que nos parece tão calmo, tão sereno, é, pelo contrário, um mundo doloroso, um mundo de revolta e de amarga impotência. De facto, a planta é um ser algemado, preso por invisíveis cadeias, que luta permanentemente para viver, sendo apenas aparente a sua passividade.»

"A Vida Maravilhosa das Plantas", 1964.


Devido a esta profunda ligação com as plantas, o jornalista Appio Sottomayor, membro da Comissão Municipal de Toponímia, em nome da referida Comissão, sugeriu um jardim com o seu nome em homenagem às flores que tanto amava e à Lisboa que tão bem cantou, referindo a urgência de «criar ou baptizar um espaço verde onde as crianças brinquem e tenham lugar privilegiado porque Lisboa tem de perpetuar o nome da musa dos seus jardins. Nem que tenha de se plantar um para o efeito!» E a Câmara Municipal de Lisboa assim fez: Em 1999, um Jardim no Restelo passou a chamar-se Jardim Fernanda de Castro. Acreditamos que essa homenagem teria sido a que mais lhe agradaria.


Ainda em "A Vida Maravilhosa das Plantas", escreveu:

 

«Se reflectirmos um momento e nos debruçarmos com atenção sobre a mais insignificante das plantas, veremos que, na verdade, há nela, uma, força indomável, uma tenacidade, uma violência, que só podem surpreender os que nunca pensaram a sério no drama a que foi condenada à nascença, o drama da imobilidade forçada desde que nasce até que morre. Drama sem remédio, pois a vida da Planta depende da raiz, seu órgão essencial, e quanto mais profundamente esta penetrar no solo, quanto mais fortemente se agarrar à terra, mais probabilidades terá de viver e, sobretudo, de sobreviver.

Julga-se habitualmente que a inteligência, é privilégio do Homem, quando muito de certas espécies evoluídas do Reino Animal, mas como explicar, senão pela inteligência, este facto observado por Brendis e relatado num dos seus livros mais divulgados?

Certa raiz, ao abrir caminho numa terra dura e áspera, encontrou no trajecto uma velha sola de bota, com tantos pequenos orifícios quantos os pregos que em tempos tivera. Que fez então a raiz? Dividiu-se em tantas radículas quantos os buracos dos pregos, cada uma destas radículas atravessou a sola pelo seu buraco, e, vencido o obstáculo, todas estas pequenas raízes tornaram a reunir-se numa única e forte raiz.

Não se julgue, porém, que a inteligência da planta se encontra na raiz: revela-se em toda planta, no caule, na folha, na flor, no próprio fruto, como facilmente se poderá verificar a longo deste volume. Serão, porém, estas plantas sensíveis à dor, tal como nós as entendemos, ou serão puramente mecânicos os seus movimentos, as suas simpatias, as suas repulsas e os seus pudores? Esta última hipótese é geralmente a preferida, mas poderão os Homens algum dia desvendar todos os mistérios, penetrar todos os segredos da natureza?»

 

Houve quem, num tom paternalista, lhe chamasse a escritora das florzinhas, o que foi contraposto, em 1970, por David Mourão-Ferreira:

«…Ela foi a primeira, neste país de musas sorumbáticas e de poetas tristes, a demonstrar que o riso e a alegria também são formas de inspiração, que uma gargalhada pode estalar no tecido de um poema, que o Sol ao meio-dia, olhado de frente, não é um motivo menos nobre  do que a Lua à meia noite. Mas foi igualmente uma das primeiras a saber saltar, dentro da mesma estrofe e quase sem transição, do riso para as lágrimas e das lágrimas para o riso, de uma manhã de sol para uma tarde de chuva, de uma atmosfera de sombra para uma exclamação de euforia, de um traço de caricatura para um tom de aguarela, de um «allegro» para um «addagio».  Ela foi ainda a primeira que soube ver Lisboa num pé de igualdade, de mulher para mulher, sem demasiados rigores nem exageradas complacências; e a primeira também que soube entender até ao âmago, até à raiz, a alma secreta do continente africano.  Ela foi tudo isso e continua a ser tudo isso: aqui, justamente, é que está o milagre!»


Procurando instalações para um dos seus Parques Infantis, pediu a Pastor de Macedo um espaço Com árvores e flores, não se esqueça, não? Ficam bem a toda a gente, mas sobretudo às crianças!

 

«Na Primavera, a Árvore era um ninho de folhas palpitantes como pequenas asas verdes. No Estio, cobria-se de flores, cada ramo era um jardim suspenso. Vinha depois o Outono, as flores mortas eram leitos de pássaros. E as folhas partiam, esvoaçando, tal borboletas de oiro. Por fim, o Inverno; em vez de folhas, braços nus, troncos mortos, desolada solidão.

Mas um dia...

Um dia, a Primavera voltou com as suas folhas palpitantes como pequenas asas verdes. O Estio, com as suas flores, os seus jardins suspensos. O Outono, com os seus pomos e as borboletas de oiro das suas folhas a dançar ao vento.
O Inverno, com os seus musgos, seus descarnados braços nus.

Mas a Árvore, a bela Árvore, era sempre a mesma, na sua ilimitada confiança. Foi então que aprendi, da Árvore, a lição: A vida é uma longa paciência e uma longa esperança.»

Fernanda de Castro, em Asa no Espaço, Edições Ática, 1.ª edição, 1955.

 

Passou em África (1912, 1919, 1962) temporadas que a marcaram profundamente e às quais foi buscar inspiração para descrever com paixão a natureza que guardava dentro de si.

Destacamos o seu maior poema, publicado em livro, "África Raiz" (1
966):

 

África, no teu corpo rugem feras, uivam fomes e medos ancestrais, no teu sangue há marés, na tua pele há dardos e punhais.

Ventre de Continentes, és mater e matriz.

Ásia é semente, Europa é flor, outros serão essência ou tronco, tu, África, és raiz.

[...]


O África dos dias incendiados, o veneno do sol que te envenena é que te faz assim, bárbara, impura, sanguinária e morena.

Mas tão pura, tão cândida também!

Ó África madrasta, África Mãe! [pp. 9, 99]

[...]

 

«Devo este poema, em grande parte, ao entusiasmo do José Carlos Ary dos Santos. Enquanto o escrevi, ele vinha todos os dias a minha casa ler o que eu adiantara desde a véspera. À medida que o poema avançava, avançava também o seu entusiasmo, que eu sabia, que eu sentia muito sincero, dizendo-me esta frase que me parecia, então, incompreensível: Este poema é o poema do século!

Eu ria, mas ele repetia muito a sério: Já lhe disse, é o poema do século!

Mais tarde, muito mais tarde, julguei compreender o que ele queria dizer e nunca disse: que este poema era como que uma exaltação da raça negra, no momento em que, talvez, ele e os seus amigos pensassem já na descolonização.»

"Ao Fim da Memória”, 1986.

 

Também em África se passa a acção de O Veneno do Sol, romance publicado em 1928 e do qual Tó Zé Martinho realizou e interpretou uma série portuguesa com o mesmo título:

«A Lua, uma Lua maravilhosamente branca e redonda, deixa cair na varanda florida um luar cor de opala. Um silêncio tropical, um silêncio apenas perturbado pelo sussurro dos insectos e pela fonte de pedra que, pingo a pingo, entorna sobre as flores uma inesperada frescura. Um aroma insistente, adocicado, um aroma de baunilha e de magnólia, sobe do jardim. Atmosfera pastosa de tornado. Um calor pesado, esmagador...

[...] À noite e em volta de grandes fogueiras, o batuque principia, o batuque selvagem que desmancha os corpos em atitudes selvagens. Nhanheros, feitos de cabaços e pele de giboia, kòrans e marimbas de pau sangue, espalham a vertigem dos sons. E um tambolé centenário, na sua voz grave e sonora, espalha por toda a região, de aldeia em aldeia, a boa nova do casamento de Cumba, neta de Modi-Mamadú-Jam, com Dabo-Sissé, filho de Monjuro.»

 

Fosse qual fosse a idade do público a que se destinavam as suas obras, descrevia plantas, animais, sons, silêncios e momentos de forma a partilhar com o leitor a sua visão, a sua memória, os seus sonhos. Assim acontece no seu romance de aventuras "Fim-de-semana na Gorongosa": Lisboa, 1969, ilustrado por Inês Guerreiro:

 

O Sol, no horizonte, parecia uma bola de fogo, que pouco a pouco foi baixando até desaparecer por detrás das colinas. Uma claridade rosada iluminava ainda as copas mais altas, mas, sob as árvores, os arbustos começavam esfumar-se e a perder os contornos. Pássaros e macacos acomodavam-se nos ramos, e um ou outro antílope retardatário apressava-se a recolher, não fosse a noite surpreendê-lo no caminho. Um perfume doce de acácia e de flor do cajueiro perfumava o ar morno e parado.

[...]

Á medida que se iam afastando da cidade, a vegetação ia ficando mais rude, a estrada mais deserta. As casinhas brancas, os pequeninos jardins floridos, as sebes de canas, as palmeiras rasteiras, iam dando lugar às árvores de grande porte, às calabaceiras, aos coqueiros, aos imbondeiros e, até, as palhotas circulares das aldeias indígenas pareciam agora fugir dos homens e esconder-se no mato.
[...]

Um cheiro a mato queimado vinha das palhotas e o som longínquo dum tambor que parecia sempre o mesmo e era sempre diferente, chegava-lhes com a aragem que agitava docemente as folhas das palmeiras. Aquele som de tambor era a voz de África que à hora do sol parece alegre e festiva e à noite é misteriosa e faz medo.»

 

No anteriormente referido jardim do seu quarto, conversava com as plantas e elas viviam, e elas cresciam, e elas floresciam.

Todos os anos, no dia 8 de Dezembro, logo de manhã, começavam a chegar flores entregues por muitas floristas, enviadas por amigos, admiradores e familiares que sabiam da necessidade de as olhar, tocar e cheirar. Então, o seu quarto era, todo ele, um enorme jardim.

E, para espanto de muitos, essas flores sobreviviam sempre para além do expectável.

Fernanda de Castro morreu de morte natural no dia 19 de Dezembro de 1994. Foi a enterrar no  cemitério do Alto de São João onde se encontravam já o seu marido e o filho mais velho, no jazigo da família.

No seu poema «Testamento», Fernanda de Castro transmite a sua vontade de ser enterrada na terra em contacto com a natureza que tanto amou:

 

Sem lápides, sem chumbo, sem jazigo; | caixão de tábuas, derradeira casa, | onde repousarei, frágil abrigo, | até me libertar num golpe de asa. || Então, quando estiver a sós comigo, | que ninguém chore porque o choro atrasa, | mas que alguém, se quiser, num gesto amigo, | ponha roseiras sobre a campa rasa. || Será medo o que sinto? Não é medo. | Serei, não serei digna do Segredo? | Ah, meu Deus, para lá das nebulosas, || Mereça ou não a expiação, a dor, | entrego-Te a minha alma sem temor. | O que resta, o que sobrar, é para as rosas.

Fernanda de Castro, «Testamento», em "70 Anos de Poesia", 1989.

 

02 — Lembrando Natércia Freire (1919-2004), vinte anos depois da sua morte,
por Mafalda Ferro


Desde que conheci Natércia Freire em casa da minha avó, era eu ainda muito nova, sempre a achei uma pessoa discreta, suave, bondosa, delicada, talentosa, com o seu quê de misticismo.

Devido a esta sua forma de ser, foi-nos especialmente difícil assistir ao silêncio a que foi votada, às injustiças que sofreu, à tristeza e ao desânimo que sentiu face ao desaproveitamento do seu talento, ao receio de ser despedida no difícil período posterior ao 25 de Abril.

Ficou, nessa altura, bem claro para todos nós, seus amigos, que a liberdade alcançada por uns, caminhou frequentemente a par da liberdade perdida por outros e, Natércia Freire é disso um dos muitos exemplos, como se pode constatar ao longo dos 142 documentos epistolares que escreveu a Fernanda de Castro, partilhando preocupações, sentimentos e  emoções e, demonstrando, também, a grande amizade que sentia pela amiga. 

[Além da correspondência trocada com Fernanda de Castro, Natércia escreveu, também, quinze cartas a António Quadros, vinte e uma a António Ferro, catorze a Germana Tânger e duas a Manuel Tânger Corrêa, colecção epistolar preservada na Fundação António Quadros]

Por diferentes razões e idênticas circunstâncias, Natércia deixou de trabalhar na «Emissora Nacional» e no «Diário de Notícias»; foram muitos os amigos que então a apoiaram, mas poucos os que o fizeram publicamente.

Mas, recuando no tempo...
Poucos têm conhecimento de que, em 1953, tendo-se prolongado no ano seguinte, Fernanda de Castro fundou, editou, dirigiu e começou a publicar uma revista, a «Bem Viver A Revista dos Lares Felizes» que viu publicados 10 números, cada um com uma temática diferente: n.º 1 A Casa; n.º 2 Boa Mesa; n.º 3 A Criança; nº 4 A Moda; n.º 5 É Assim a Nossa Gente; n.º 6 Enfeites; n.º 7 - Recreio; n.º 8 Vida do Espírito; nº 9 Beleza e Higiene; n.º 10 Jardins e Janelas Floridas. Nos dois primeiros números, os textos são todos de Fernanda de Castro. Natércia Freire participou nos números 3, 4, 5, 7, 8, 9 e 10.


Natércia Freire integrou, com Ramiro Guedes de Campos e João Pires, o júri dos «Jogos Florais da Praia de Armação de Pera 1963», presididos por Fernanda de Castro que a acolheu então na sua casa em Alporchinhos.

Nessa casa que ficou na memória de todos os que por lá passaram, a anfitriã recebia a família e os amigos/colaboradores (Ary dos Santos, Inês Guerreiro, Heloísa Cid, Natércia Freire e muitos outros) enquanto participavam ou eram espectadores em muitos dos seus projectos algarvios.

[Lembro-me muito bem dessa casa, sem electricidade nem água canalizada, onde se passava os dias ao ar livre, passeando ou descendo à praia pelas arribas e, onde, ao serão, sempre à luz das velas, se jogava às cartas, se falava de literatura, se dizia poesia e, havendo intérprete, se ouvia música e canto ao som de uma qualquer viola ou guitarra. Aliás, foi nessa casa que a minha irmã Rita, com doze ou treze anos, escreveu o seu primeiro poema; acho que se chamava «Dormia sozinha numa casa abandonada, à luz de uma vela apagada...».

Bebíamos água, límpida e fresca, tirada de um enorme poço do qual não se via o fundo e guardada em bilhas muito pesadas. No fim do Verão, deliciávamo-nos com figos acabados de apanhar e  colocados a secar na açoteia da casa. Foi num desses serões que aprendi a jogar crapaud com o meu pai.] 

Para Natércia Freire, a poesia parece não ser um monólogo mas antes um diálogo. Há em Natércia todos os indícios de que será capaz de ir tão longe quanto permitido lhe for. Estamos em presença de uma escritora tão rica de sugestões, que tudo se pode esperar da sua obra.

António Quadros, excertos do artigo «Os poemas de Natércia Freire, diálogo e invocação»,
publicado no «Diário do Norte», em Agosto de 1957.

O seu género literário maior é a Poesia. No entanto, foi também uma excelente jornalista, crítica literária e contista.

De destacar, os seus livros de contos A Alma da Velha Casa, publicado em 1945, com capa de Inês Guerreiro, obra que dedicou "A Fernanda de Castro, coragem e alegria, a quem devo a coragem de publicar este livro. N. F.", e Infância de que nasci, com capa e ilustrações de Ofélia Marques onde registou no exemplar que ofereceu a Fernanda de Castro: À Fernanda de Castro, à grandeza da sua poesia e da sua alma - as duas sempre tão juntas, com a devoção, a amizade e a maior admiração da Natércia Freire.

Em 2001, a Assírio & Alvim editou Antologia Poética de Natércia Freire que Ana Marques Gastão apresentou e cujos poemas foram interpretados durante a cerimónia por Maria Germana Tânger e Diogo Bento.


Uma das vozes mais límpidas da moderna poesia portuguesa,

Luís Forjaz Trigueiros, em "Os Intrusos" de Natércia Freire, 1971.


Natércia Freire morreu no di
a 19 de Dezembro de 2004, no mesmo dia que Fernanda de Castro, esta em 1994.

Visito os amigos mortos,
Pensando que indo, estão vivos.
 
Entre a penumbra dos quadros,
Andam eles em sorrisos.

Pronuncio a frase antiga,
E dou comigo sozinha.

Oiço então o dia exacto,
Da estridente campainha.

Volto a casa, fecho o som,
Por dentro da persiana.

E então os retratos andam,
Á volta da minha cama
.

Natércia Freire


Legenda: Natércia Freire, retratada por Martins Correia.

 

03 – Fernanda de Castro e a música enquanto elemento pedagógico, social e cultural,
por Mafalda Ferro.


Celebrando Fernanda de Castro, 30 anos depois da sua morte e 124 anos depois do seu nascimento, associamo-nos ao Dia Mundial da Música (1 de Outubro), disponibilizando o artigo de Helena Marinho (professora auxiliar da Universidade de Aveiro e investigadora do INET-MD):  «Das Palavras e da Música: Intersecções na Obra de Fernanda de Castro», artigo publicado na revista «Nova Águia», n.º 26, dedicada também a Fernanda de Castro nos 120 anos do seu nascimento, em 2020.

Este ensaio de Helena Marinho, que pode ser lido na íntegra AQUI, aborda o envolvimento em criação musical da autora e poetisa Fernanda de Castro (1900-1994), partindo do conceito de sociabilidade. Discute-se o enquadramento da sua produção artística ligada à música, em particular durante o período do Estado Novo em Portugal. A partir da identificação, caracterização e contextualização dessa produção, propõe-se uma análise da intersecção entre música, texto e género que lhe está subjacente.

Quem se lembra de Fernanda de Castro, recorda com um sorriso, como me acontece, o seu costume de estar sempre a fazer música, em surdina, para dentro, sem voz, pensando nas letras. Nem sei se a própria disso se apercebia.

Na minha opinião, a ligação de Fernanda de Castro à música é mais visível em projectos como os Parques Infantis, mais especificamente no Círculo de Cultura Infantil «O Pássaro Azul»; o «Teatro de Câmara António Ferro»; os Festivais do Algarve; entre muitos outros.

Sem nunca ter aprendido música, sem saber tocar um instrumento e sem ser cantora, Fernanda de Castro escrevia letras e, trauteando, criava músicas para filmes, bailados, teatro, canções infantis, fado e festas populares. Quase todos os seus projectos tinham uma componente musical, podendo sempre contar com o apoio de amigos como o maestro Frederico de Freitas e a sua filha, compositora e maestrina, Elvira de Freitas, a pianista Edith Arvelos, a cantora e guitarrista Margarida Homem de Sousa, a fadista e sobrinha Maria João Quadros, a fadista Ada de Castro, a pianista e compositora Nina Marques Pereira, a bailarina Águeda Sena, o cantor Miguel Barata-Feyo, a pianista Cristina Lino Pimentel, a fadista Amália Rodrigues, Daniel Gouveia e muitos outros.


Em complemento, informamos sobre alguns elementos associados à Música existentes no arquivo histórico da Fundação. Referimo-nos a Pautas, Libretos, Letras, Partituras e Recibos da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses produzidos e/ou reunidos, na sua maioria, por Fernanda de Castro. Embora, algumas destas peças devessem estar acondicionadas na biblioteca, integrámo-las na série “Música”, por motivos de conservação, segurança física e organização. Salientamos apenas algumas das peças de que mais nos orgulhamos de possuir:

Partitura para piano e voz intitulada “Cancioneiro Musical Português”, volume I, fascículo I. Inclui capa e 8 fólios numerados nas 16 páginas. Pauta identificada como “I - Romance: A noiva enganada”; “II- Canção trovadoresca: No Figueiral, Figueiredo…”; III – Canção de Embalar”; IV – Cântico de Procissão: Santo Antão”; V – “Canção Bailada: San João da Serra”; VI – “Cantiga: Adeus, ó Val-de-cordéis”; VII – “Cantiga Bailada: Olaré quem brinca”. Autoria: Francisco Lacerda. Edição: Junta de Educação Nacional, secção de folclore, 1935. [FAQ/10/00001]

Partitura intitulada “Scenas Portuguesas para piano, 2.º Vol. Vito. Dança Popular”, Inclui capa e 10 fólios numerados nas 10 páginas. Pauta identificada como “Vito Dança Popular”. Com anotações manuscritas. Edição: Lisboa: Sassetti & C.ª (4.ª edição). Autoria: José Vianna da Motta. [FAQ/10/00002]

Partitura intitulada “Cravistas portuguezes” para cravo e piano. Inclui capa e 52 páginas numeradas. Edição: Edition Schott n.º 2382. Autoria: M. S. Kastner [Macário Santiago Kastner], 1935. [FAQ/10/00004]


Partitura em francês intitulada “Bouquet pour piano”. A capa está carimbada pelo “Serviço de Orquestras Arquivo Musical”. 12 páginas que incluem a capa. Edição e propriedade do compositor (2.ª edição), sem data. Autoria: Ruy Coelho. [FAQ/10/00007]

Partitura intitulada “Suite Portuguesa” n.º 1: dança portuguesa – fado – chula. Para piano. Com carimbo, na capa, na folha de rosto e na primeira página da pauta, da Emissora Nacional. Capa e 12 páginas. Edição: Lisboa: Sassetti & C.ª (4.ª edição), sem data. Autoria: Ruy Coelho. [FAQ/10/00009]

Partitura intitulada “A Propos de Bottes – conte musical pour les enfants”, para canto e piano, incluída na colecção “La musique en famille et à l’école”. Capa, folha de rosto e 42 páginas numeradas. Edição: Paris: Durand et Cie Editeurs, Agosto de 1932. Texto de René Chalupt. Música de Darius Milhaud. Data: Agosto de 1932. [FAQ/10/00011]

Conjunto de 6 partituras com letras associadas às actividades do Ciclo de Cultura Infantil "O Pássaro Azul": «O Urso Felpudo», música de Nina Marques Pereira, 2 fólios (00019); «Boia, Boia», canção com gestos, 2 fólios (00020); «Cowboys», Santa Catarina, 1 fólio (00021); «As Rãs», 02 fólios (00022"); «Na Loja do Mestre André», 2 fólios (00023); «As Meninas Exemplares», música de Nina Marques Pereira, 16 fólios (00024). [FAQ/10/00019 - FAQ/10/00024]

Conjunto de partituras associadas a outras actividades de Fernanda de Castro:  «As Janeiras (sem letra); e «Alma ao sol, flor na mão», letra de Fernanda de Castro, 09.07.1979; «Saudade não tem perdão», letra de Fernanda de Castro, 10.07.1979; «Ai que saudades eu tinha», letra de Fernanda de Castro, 09.07.1979; «Lá porque sou pecadora», letra de Fernanda de Castro, 09.07.1979. [FAQ/10/00025 - FAQ/10/000

Pasta de Partituras, poemas de Fernanda de Castro. Muito variado: Descrição e autoria das partituras, muitas ainda inéditas: Fandango para piano, por Armando José Fernandes, 1937; Nocturno, por Condessa de Proença-a-Velha, soneto de Fernanda de Castro com dedicatória manuscrita de Condessa de Proença-a-Velha para Fernanda de Castro, Lisboa, 1934; Hino dos Parques Infantis, por Ruy Coelho, letra de Fernanda de Castro; Scenas Portuguezas, para piano, por José Viana da Mota; Rua Velha, para flauta e violino, música e poema de Fernanda de Castro; e outras não identificadas. [FAQ/10/00029]

— Partitura intitulada «Marcha da Colmeia» (1958). Versos de José Galhardo. Música de João Nobre. Lisboa, 1958.  [FAQ/10/00030]


Também no arquivo SIM (som, imagem, movimento), existem peças muito interessantes no âmbito da temática aqui tratada. Citamos algumas dessas peças:

Filme em DVD: Serão em casa de Fernanda de Castro (31 de Maio de 1990) com Inês Guerreiro, Margarida Homem de Sousa a tocar e a cantar, Edith Arvelos, Heloísa Cid, etc. [PT/FAQ/SIM/00034]

CD áudio: Velho Bairro Alto. Intérprete: Ana Margarida Dias (voz); António Parreira (guitarra); Carlos Macieira (viola). Letra: Fernanda de Castro. Compositor: Daniel Gouveia. Local e data: Lisboa, 2003. [PT/FAQ/SIM/00081]

CD áudio: Encontros d´Água. Espelhos. Intérpretes (voz): Ana Rocha, Cristina Rosal, Maria João Moreno. Intérpretes (música): Pierre Gillet (guitarra), Miguel Rosal (contrabaixo), Thibault Dille (acordeão). Músicos convidados: Igor Ribeiro e Swami Jr. Observações: O CD inclui o poema Asa no Espaço de Fernanda de Castro, cantado e musicado por Maria João Moreno. Local e data: [Bruxelas], [s.d]. [PT/FAQ/SIM/00085]

CD áudio: Ada de Castro canta Fernanda de Castro: Alguém mandou-me violetas. Data e Local: Portugal, 1 de Janeiro 1995. [PT/FAQ/SIM/00088]

Cassete áudio: Umas horas com Fernanda de Castro. Lisboa, 8 de Dezembro de 1963. [PT/FAQ/SIM/00095]

Cassete de vídeo: Serão com Fernanda de Castro, com fados, música e versos de Fernanda de Castro. À viola e a cantar, Margarida Homem de Sousa e Regina Lorena. Duração: 120 min. Autoria: Mafalda Ferro. Local e data: Lisboa, Calçada dos Caetanos, 31 de Maio de 1990. [PT/FAQ/SIM/00106]

Disco de vinil, single, 45 rotações: Marchas de Lisboa. Intérprete: Miguel Barata-Feyo. Produção: Daniel Gouveia. Arranjos e conjunto de guitarras: António Chainho. Letra: Fernanda de Castro. Música: Frederico de Freitas (Lado A); Elvira de Freitas (Lado B). Género/Estilo: Música Popular Portuguesa. Edição: Decca / Valentim de Carvalho. Local e data: Portugal, 1957. [PT/FAQ/SIM/00444]

Cassete áudio: Fados e poemas de Fernanda de Castro, de David Mourão-Ferreira, de Heloísa Cid, músicas de Elvira de Freitas, acompanhamento à viola de Margarida Homem de Sousa e ao piano de Edith Arvelos. Temas e Poemas: Cantar, hei-de cantar; Alma ao sol e flor na mão; Micas; Como não posso dormir; Saudade, não tens perdão; Lá porque sou pecadora; Noite apressada (poema de David Mourão-Ferreira, música de Fernanda de Castro, cantada por Margarida Homem de Sousa).  Local e data: Lisboa, Janeiro de 1979. [PT/FAQ/SIM/00593]

— Disco de vinil, single, 33 1/3 RPM: «Canções Infantis». Capa: Fernando Bento. Autoria (música e letra): Fernanda de Castro. Data: [Década de 1960] Intérpretes: Victória Maria e Fátima (meninas dos Parques Infantis). Canções: Bom dia... Bom dia; Mãezinha, perdão; A menina viu o sol; O cavalinho de pasta; Natal; Canção de berço; O soldadinho de chumbo; A Menina Rica. Edição: Alvorada, 2010.[PT/FAQ/SIM/00631]

— CD áudio: «Fado aos 80». Intérprete: Daniel Gouveia. Músicas: Daniel Gouveia e outros. Fados: Oitenta anos; Mais festa na Mouraria; Adeus, adeus, Mouraria; Fado do Regresso; Noite alta, na Ribeira; A rua da minha vida; O Chico e a Micas (de Fernanda de Castro); O velho Bairro Alto (de Fernanda de Castro); Poeta Maior; Três relíquias velhíssimas; Vida perdida; O portão do fado. Letras: Fernanda de Castro; Daniel Gouveia; Artur Soares Pereira; José Fernandes Castro; Carlos Conde; Victor Conde; Paulo Conde. Guitarra: Armindo Fernandes. Viola: Carlos Macedo. Estúdio: Jorge Fonseca. Capa e grafismo: Daniel e Elvira Gouveia. Dedicatória manuscrita: Com o maior gosto por ter prestado tributo à grande poetisa Fernanda de Castro e com um abraço de amizade, Daniel Gouveia. Data: Setembro de 2023. Edição: Edições DG, 2023. [PT/FAQ/SIM/00632]

 
04 – Evocar o Secretariado de Propaganda Nacional 91 anos após a sua constituição,
por Cândida Cadavez

Foi António Ferro quem convenceu Salazar acerca da importância da criação de um órgão que deveria dedicar-se plenamente à arte da propaganda, prática comum em regimes políticos pelos quais o Estado Novo português nutria evidente admiração. A inicial relutância do Presidente do Conselho quanto ao estabelecimento daquilo que viria a ser o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) caiu por terra perante os argumentos apresentados pelo futuro director do mesmo, que antevia no SPN uma necessária via de aproximação entre Salazar e a população.

Criado pelo decreto-lei n.º 23:054, de 25 de Setembro de 1933, com a justificação de “que todos os países novos ou renascentes têm sentido a necessidade de organizar e centralizar a propaganda interna e externa da sua actividade”, o SPN inaugurou as suas primeiras instalações, sitas em São Pedro de Alcântara, no dia 26 de Outubro do mesmo ano numa cerimónia amplamente divulgada pela imprensa escrita e pela Emissora Nacional, e na qual participaram membros do governo, diplomatas e académicos. Salazar terá chegado pontualmente às “dependências do Secretariado, que se encontram elegantemente decoradas, embora com simplicidade modernista” (Diario de Lisbôa, 26 de Outubro de 1933: 8), onde foi recebido por António Ferro, o único director que o Secretariado teve, e que desempenhou funções idênticas no órgão que veio a substituir esta repartição em 1944, o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI). Ao longo da sua intervenção no acto inaugural, Salazar defendeu que uma propaganda nacional eficaz seria aquela que, ao serviço da governação, permitiria corrigir os erros e as ignorâncias que pudessem denegrir a imagem que nacionais e estrangeiros possuíssem de Portugal. António Ferro, por seu turno, destacou o contexto de paz social existente em Portugal por oposição ao clima de instabilidade e violência sentido no resto da Europa, tema que lhe era particularmente querido, bem como a grandiosa missão do Secretariado, pois que lhe cumpria “fazer a propaganda moral duma obra” (Diario de Lisbôa, 26 de Outubro de 1933: 8), entendida como “uma cruzada nacional (…) que já principiou e não acabará mais” (O Seculo, 27 de Outubro de 1933: 2).


O SPN dividir-se-ia numa secção interna e numa secção externa, tendo por objectivo comum dar a conhecer “o espírito de unidade que preside à obra realizada e a realizar pelo Estado Português”, conforme o artigo 2.º do decreto-lei que o criou. Essa divulgação seria veiculada através de publicações feitas por uma imprensa regulada e por outros tipos de edições, que não difundissem “quaisquer ideias perturbadoras e dissolventes da unidade e interêsse nacional” (Decreto-lei n.º 23:054, artigo 4.º, alínea f, e artigo 5.º, alínea b).


Além disso, quase logo após a sua criação, o SPN viria a agenciar um conjunto de actividades e iniciativas, o que em muito contribuiu para que a propaganda pretendida se concretizasse. Assim, logo em Janeiro de 1934, teve início a organização das inúmeras palestras e conferências que realizaria com oradores portugueses e estrangeiros, sobre as mais variadas temáticas culturais, políticas, económicas e outras. Fazendo jus ao decreto criador, desenvolveu ainda “manifestações nacionais e festas públicas com intuito educativo ou de propaganda” e a colaboração “com todos os organismos portugueses de propaganda existentes no estrangeiro”.


O Secretariado de Propaganda Nacional, bem como o seu sucessor Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, estiveram inúmeras vezes envolvidos na participação e na organização de exposições e feiras, nacionais e internacionais, tendo igualmente sido os principais precursores de diversas actividades de propaganda implementadas pelas Casas de Portugal existentes à época. 

 

05 — Manuel Tânger Corrêa e a sua sempre presente paixão pelo teatro,
por Mafalda Ferro.


Manuel Tânger Corrêa nasceu a 24 de Outubro de 1913, concelho e freguesia de Santa Cruz das Flores, Açores, filho de António da Cunha Corrêa e de Zélia Tânger Corrêa, ambos naturais da cidade da Horta, ilha do Faial.


Estuda em Lisboa, no Liceu Passos Manuel e, posteriormente, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa que troca, em 1941, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


Desde então, é notório o seu interesse pelo teatro, aderindo, em todos os estabelecimentos de ensino que frequenta, a vários grupos teatrais em Lisboa e, também nos Açores, representando, escrevendo e adaptando peças de teatro.


Enquanto estudante na Faculdade de Letras, concebe, escreve os estatutos e dirige o teatro universitário por si fundado (1.º grupo de teatro experimental português) que intitula Teatro Moderno. Nesse contexto, interpreta obras dramatúrgicas de autores que muito admira como Raul Brandão, Miguel Torga, José Régio e Garcia Lorca. Colaboram no projecto, entusiastas desde o início, os seus colegas Abel Flórido, Joaquim Serra, António Almodôvar, Madalena Núncio de Carvalho, Fernando Alves Soromenho, Luís de Sousa Rebelo, Rogério Boa-Alma, Dulce Rebelo e Artur Nobre de Gusmão, sendo que os cenários eram de Guilherme Filipe e de António Dacosta. A presidência do Teatro Moderno, a seu convite, foi assumida por Delfim Santos. 
O grupo actua em várias salas de teatro sitas em vários locais.

É também da sua responsabilidade, redigir, para aprovação da Administração da Faculdade de Letras, um relatório de actividades ao qual acrescenta rasgados agradecimentos e elogios a Madalena Núncio de Carvalho, Maria Rafaela Saldanha, Maria Cândida Ferreira, Dulce Rebelo, Maria da Soledade Freire, Manuel Moreno Gomes, Rogério Boa-Alma, José Pisani Burnay, Camilo Solevinho, ao encenador, o Prof. Carlos de Sousa, e ao Professor Delfim Santos (figura que desde a primeira hora incerta foi como que o nosso pai espiritual e advogado devotado, o nosso animador [FAQ/15/00216]).


Termina o curso de Filologia Românica com 15 valores, destacando-se especialmente em Latim, Francês, Literatura Portuguesa, Filologia Portuguesa, apresentando uma tese sobre António Patrício.


Como referido em «A Ilha», n.º 784, de 12 de Abril de 1947, o Grupo de Teatro Moderno leva à cena nos Açores, em absoluta estreia, «Yerma», peça em 3 actos e 6 quadros de Frederico Garcia Lorca, traduzida por Cecília Meireles. Manuel Tânger Corrêa e Maria Germana Dias Moreira integram o elenco. No mesmo dia, é entrevistado pelo «Correio do Ribatejo» sobre o Teatro Moderno, o seu elenco e os colaboradores.


No mesmo mês (dia 18), no âmbito do intercâmbio luso-britânico, profere no Grémio Literário [A Voz, n.º 7217] a conferência «Evolução do Teatro desde a Grécia até aos nossos dias» e, três dias depois,
o «Grupo do Teatro Moderno» realiza um espectáculo, apresentado por Paulo Quintela, a favor da Sociedade Filantrópico-Académica de Coimbra, no Teatro Avenida de Coimbra, no qual participam, entre outros, Manuel Tânger Corrêa e a sua noiva Maria Germana Dias Moreira e, no dia seguinte (dia 22), a representação acontece no Teatro Rosa Damasceno em Santarém, levando à cena «Mar», de Miguel Torga, e «O Doido e a Morte», de Raul Brandão.
No dia 23 de Abril, o Diário de Coimbra publica «A visita do teatro de estudantes da Faculdade de Letras de Lisboa: Madalena Núncio confia-nos as suas impressões».

Desde 1948, ensina Português, Francês, Inglês e Direito Comercial na Academia Internacional de Ensino por Correspondência, no Instituto Lusitano de Comércio e no Liceu D. João de Castro e nesse ano, a 31 de Julho casa com Maria Germana Dias da Silva Moreira que viria a destacar-se como actriz, encenadora, professora de dicção, e teatro, colaboradora na RDP e na RTP e divulgadora internacional dos grandes poetas e prosadores portugueses utilizando o nome de Maria Germana Tânger.


No dia 20 de Junho de 1949, Manuel Tânger Corrêa presta provas para actor e é aprovado, juntamente com Isabel de Castro e Jacinto Ramos, conforme referido dois dias depois em «A Voz», no artigo «Exames para actores profissionais no Conservatório Nacional».


Em 1950 (28 de Março), conforme anúncio publicado no «Diário de Lisboa», n.º 9810, de dia 24, Manuel Tânger Corrêa comenta em «Terças-feiras clássicas do Tivoli» «Henrique V», de Lawrence Olivier e de Shakespeare.


No mesmo ano (1 de Novembro), inicia funções como Leitor de Português na Faculdade de Letras da Universidade Católica de Poitiers.


De férias em Portugal, interpreta o Sr. Milhões numa peça de Raul Brandão, parte do espectáculo de teatro e variedades levado a efeito pelos doentes do Sanatório de Santa Maria,
no Cine-Teatro da Caixa Recreativa do Sanatório Jerónimo de Lacerda.

A partir de 1955, até 30 de Novembro de 1956, ocupa o cargo de Leitor de Português no Instituto Católico de Paris, cidade onde escreve 
“Mallarmé e Fernando Pessoa através do ‘Corvo’ de Edgar Allan Poe” cujo original viria a publicar no Rio de Janeiro, em 1968.

Ainda em Paris, colabora em programas da Radiodiffusion Télévision Française para Portugal. Esta colaboração continua, mesmo depois do seu regresso a Portugal, até 1967.

Em Dezembro, nos primórdios da Televisão em Portugal (1956), é convidado para assumir a primeira direcção de programas da RTP, funções em que – conforme salientou o matutino «O Século» - a despeito do interesse e carinhoso apoio que dispensou ao Teatro e aos artistas, não deixou de sofrer – pelo seu espírito independente, contrariedades e perseguições que o abalaram profundamente.


No âmbito do seu trabalho, adapta pequenas peças em 1 acto para emissão na RTP como «Um segredo que toda a gente sabe», de Alexandre Casona; «Meu Filho», comédia de Pierre Didier (emitida a 9 de Julho); «Realidade da Fantasia», de Claude Gével. 
Traduz, também para emissão na RTP, do francês para português (tradução francesa de Li Tche-Houa e Robert Ruhlmann) a tragédia chinesa «O adeus à favorita» e a peça em 3 actos «Noite sem madrugada», de Thierry Maulnier. Traduz, também, do francês:

 - Noite sem Madrugada (La maison de la nuit), de Thierry Maulnier: para o Teatro Nacional D. Maria II.

 - O Preço da Glória (Pour être Joué), de Georges Wissant: emitida na RTP.

 - Um segredo que toda a gente sabe (La fable du secret bien gardé), adaptação francesa da peça de Casona por André Camp: emitida na RTP.

 - Realidade da Fantasia (Dans l'histoire du cœur), de Claude Gével: emitida na RTP.

 - Meu Filho (Mons Fils), de Pierre Didier: emitida na RTP.


A 19 de Maio de 1959 adere ao Sindicato Nacional dos Profissionais de Telecomunicações e Radiodifusão, com a categoria de Profissional de «Chefe da Secção de Informação e Arquivo / Radiodifusão.


Em 1962, os seus problemas de saúde intensificam-se e é internado no Hospital de Santa Maria de 11 de Julho até 29 de Setembro, sendo obrigado a ausentar-se da RTP até 1964. Entretanto, o cargo que ocupava é extinto.


A 5 de Abril de 1963, é internado no Caramulo (Estância Sanatorial do Caramulo) com tuberculose pulmonar e, no mês seguinte, a família muda-se para uma nova casa em Queluz.

No ano seguinte, no Caramulo, é declarado completamente curado e recebe alta. 
De regresso à RTP, aguarda uma decisão, que tarda em chegar, sobre a sua situação profissional. Entretanto, candidata-se ao cargo de Director-geral da RTP, recentemente vago, mas é encarregado (provisoriamente) de organizar um serviço Literário e Artístico. A convite de José Solari Allegro, assume a direcção de um programa semanal (domingos) na Emissora Nacional intitulado «Música e Poesia» no âmbito do qual assina e apresenta um «Curso de Literatura Portuguesa» para o qual escreve, nos anos de 1964 e 1965, centenas de guiões para esses programas radiofónicos. No ano seguinte, vê-se obrigado a interromper este projecto devido a um novo agravamento da sua situação clínica que o obriga a um novo, embora mais curto,  internamento no Caramulo (Agosto).

Ainda no mesmo ano (22 de Setembro), é nomeado pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Franco Nogueira, para o cargo de Adjunto do Conselheiro Cultural ou Adido Cultural na Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro. No âmbito das suas funções, dedica-se também a promover a literatura portuguesa. No Brasil, admirado por todos e alvo de múltiplas homenagens, lecciona Literatura Portuguesa.


Em Brasília, é-lhe atribuído, por decreto de 10 de Abril de 1970 assinado pelo Presidente da República Federativa do Brasil, o grau de Cavaleiro da Ordem de Rio Branco. No Rio de Janeiro (31 de Agosto), a Academia Brasileira de Belas Artes atribui-lhe, pelo seu mérito pessoal e apreço à Nação Portuguesa, o título de Correspondente Cultural, com Honras Académicas patentes em diploma assinado pelo General José Venturelli Sobrinho, fundador e primeiro presidente da Academia.


Desempenhando as funções de Cônsul de Portugal em Gijón, recebe a 13 de Agosto de 1971 uma carta de Humberto Delgado que lhe anuncia a sua saída do Ministério.
De regresso a Portugal (
20 de Janeiro de 1975), Manuel Tânger Corrêa morre de choque traumático em Espanha; o seu corpo é sepultado quatro dias depois (dia 24) no cemitério de Queluz, distrito de Lisboa.
Tinha 61 anos.
 

 
06 – Entidades parceiras e outras. Divulgação. 

 
07 — Publicações recentes. Divulgação.

 
09 — Livraria António Quadros
Obra em Promoção até 14 de Novembro de 2024


Autoria:
 Fernanda de Castro [1900-1994]

Título: África Raiz. Poema. [2.ª edição]

Capa e ilustrações: Teresa Vergani.

Edição — Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2004.

Impressão: Mem Martins: Gráfica Europam, Lda.

Observações: África Raiz foi publicado pela primeira vez em 1966, edição da autora, impresso na tipografia de A. Guerreiro em Setúbal. África Raiz, o maior poema europeu consagrado ao continente africano é dedicado pela autora À terra de Bolama, em cujos braços repousa minha mãe.


Testemunhos:

De José Carlos Ary dos Santos: O poema do século.

De Ferreira de Castro: Ainda tenho nos ouvidos o ritmo excelso dos seus versos, nos olhos as figuras que eles evocam, a luz e a cor da terra forte, leda e mártir que eles habitam. É um poema extraordinário, o seu. Que força expressional e consecutiva, que fôlego sem desfalecimento, que altura sem vertigens, que beleza!

PVP: 20€

 
 
     
 
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